Arquidiocese de Braga -

1 setembro 2022

“Somos parte de uma natureza viva”: conversões nas visões do Papa e indígenas sobre a relação da humanidade com a criação

Fotografia Vatican Media

DACS com NCR

Escritos de Francisco dizem claramente que se deve “cuidar da casa comum, defendendo a natureza, defendendo os direitos, e não explorando, mas defendendo a criação de Deus”.

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Sentada num barco no lago Sandoval, no meio da floresta amazónica no Peru, com o sol a pôr-se a oeste e a lua a nascer a leste, Yésica Patiachi viu duas araras a voarem e sentiu que eram os seus avós a cumprimentá-la.

“O meu avô sempre disse que o seu espírito se transformaria numa arara”, disse Patiachi, de 35 anos, uma mulher indígena Arakbut (também escrito “Harakbut”). “Eu disse que eles eram o meu avô e a minha avó”, disse ela sobre os pássaros. “Isso deixou-me triste, mas também feliz”.

Patiachi foi uma das pessoas que se dirigiu ao Papa Francisco durante a sua visita à região amazónica de Madre de Dios, no Peru, em Janeiro de 2018. Diante de milhares de indígenas de pelo menos cinco países amazónicos, contou ao Papa as dificuldades que o seu povo enfrentava numa região conhecida pelas suas florestas biologicamente diversificadas, mas devastadas pela prospecção de ouro descontrolada.

“Pedimos-lhe que nos defenda!”, disse Patiachi.

Francisco, por sua vez, pediu à sua audiência para se agarrar às suas práticas tradicionais e para ensinar os bispos e outros trabalhadores da Igreja.

“Considero essencial começar a criar expressões institucionais de respeito, reconhecimento e diálogo com os povos nativos, reconhecendo e recuperando as suas culturas, línguas, tradições, direitos e espiritualidade”, disse o Papa aos reunidos em Puerto Maldonado.

“Ajudem os vossos bispos, e ajudem os vossos missionários e missionárias a serem um convosco e, assim, através de um diálogo inclusivo, formar uma Igreja com rosto amazónico, uma Igreja com rosto indígena”, acrescentou, anunciando que seria realizado no Vaticano um Sínodo para a Amazónia no ano seguinte.

O sínodo – geralmente, uma reunião mundial de bispos católicos – e a exortação papal que se seguiu, intitulada “Querida Amazónia”, foram marcos no desenvolvimento da compreensão de Francisco sobre questões ecológicas e indígenas, que também se reflectem na sua encíclica de 2015 “Laudato Si’, sobre o Cuidado da Nossa Casa Comum”.

Patiachi e outras duas mulheres indígenas que participaram no Sínodo para a Amazónia de Outubro de 2019 dizem que há uma convergência significativa entre a visão de Francisco sobre a relação entre os humanos e o resto do mundo natural e a sua compreensão indígena, com base na visão de mundo do seu povo, ou cosmovisão. No entanto, vêem áreas em que ainda há trabalho a ser feito.

Sentada ao lado de uma fogueira numa noite fria de Junho, perto do rio Madre de Dios, não muito longe de onde conheceu Francisco, Patiachi deu a um grupo de estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Peru a possibilidade de “ouvirem a voz da criação”, que Francisco e outros líderes cristãos encorajaram como tema do Tempo da Criação deste ano.

Alternando entre a sua língua nativa e o espanhol, contou uma história da criação de seu povo, explicando como uma enorme árvore abrigou humanos e outros animais quando a Terra era uma massa derretida, e como um pássaro se tornou num ser humano e roubou o fogo do diabo, que o amaldiçoou e o transformou permanentemente numa arara.

“A concepção de mundo do meu povo é a de que não somos os únicos seres a viverem aqui”, disse mais tarde Patiachi ao EarthBeat. “Embora seja verdade que temos uma aparência humana, existem outros seres. Às vezes podemos vê-los com os nossos olhos físicos, às vezes só comunicamos através de sonhos ou outras manifestações. Somos parte de uma natureza viva. É o que os meus avós me ensinaram”.

Acrescentou ainda: “A floresta está viva. Existem seres lá. É o lar de tantos ancestrais que lá vivem.”

Na “Laudato Si’”, Francisco sublinha a relação entre as pessoas e os ecossistemas onde vivem, mas ainda dá ao homem um lugar privilegiado. Para os povos indígenas da Amazónia, no entanto, a distinção é menos clara.

Quando a sua avó preparou um macaco que tinha sido caçado para comer, disse a Patiachi mulher que o macaco já tinha sido uma pessoa, e no mundo espiritual ainda era uma pessoa. Os caçadores devem tratar os animais com respeito e, em troca, os animais, que os reconhecem como parentes, fornecem-lhes comida.

“Eles são seres humanos”, disse Patiachi. “Têm outras roupas, mas são Arakbut”.

Mas, apesar dessa maneira diferente de entender a relação entre os humanos e o mundo à sua volta, uma parte fundamental da mensagem de Francisco ecoa profundamente, disse Patiachi, que foi recentemente nomeada vice-presidente da REPAM, a Rede Eclesial Pan-Amazónica: “Somos parte da natureza. Ninguém tem autoridade para dominá-la”.

Patricia Gualinga, líder Kichwa da comunidade de Sarayaku, no Equador Amazónico, e primeira representante indígena na Conferência Eclesial da Amazônia formada após o sínodo do Vaticano de 2019, concordou.

“Há uma grande convergência” entre a compreensão de mundo do seu povo e a visão de Francisco, disse, “no sentido de valorizar a natureza como parte da vida, como uma parte muito importante do habitat”.

Os escritos de Francisco dizem claramente que se deve “cuidar da casa comum, defendendo a natureza, defendendo os direitos, e não explorando, mas defendendo a criação de Deus”, acrescentou. “A forma como a igreja como instituição deve acompanhar os povos indígenas na defesa dos seus direitos, na defesa da Amazónia, na defesa da natureza – esses são pontos de convergência muito importantes”.

O apelo para acompanhar os indígenas que lutam pela protecção dos seus territórios foi tema constante no Sínodo da Amazónia. (…)

Tania Ávila, teóloga quíchua de Cochabamba, Bolívia, questiona as constantes referências aos “pobres” em documentos como a Laudato Si’ e a Querida Amazónia.

“Seria diferente se fossem «os empobrecidos pelo extractivismo colonial», ou «os empobrecidos pelo extractivismo das empresas transnacionais», mas não, aqui o pobre é o responsável”, disse Ávila.

“É um pouco contraditório, porque [Francisco] diz que temos que aprender com as cosmovisões [indígenas], com a sua maneira de conceber o mundo, mas aos povos indígenas não foi perguntado se eles se sentem pobres. E, quando são questionados, muitas vezes os representantes, especialmente as mulheres, dizem que não”, acrescentou. “Sim, há pobreza económica, precariedade económica, mas não há um repensar do que significa a pobreza”.

O apelo para que os católicos façam uma “opção preferencial pelos pobres” implica que a Igreja seja rica, enquanto outros são pobres, disse Ávila. “Quando exercemos poder sobre o outro, podemos fazer uma opção pelo outro, porque estamos a colocar-nos acima dele”.

Em vez de uma opção preferencial pelos pobres, Ávila gostaria que a Igreja fizesse uma opção preferencial com os pobres.

A Igreja dá prioridade “à evangelização dos pobres... mas não há planos pastorais para evangelizar os ricos. Não há planos pastorais para evangelizar aqueles que têm poder de decisão política e económica”, disse Ávila. “Porque não usar toda essa energia para evangelizar os ricos, aqueles que têm posições de poder, aqueles que podem fazer algo para mudar as estruturas?”.

Documentos como a Laudato Si’ e a Querida Amazónia lançam as bases, disse Gualinga, mas acrescentou: “Ainda há muito trabalho a ser feito”.

“Foi feito um esforço para avançar, mas sabemos que estas coisas precisam de ser aplicadas no terreno e são necessários mais progressos”, afirmou.

Artigo de Barbara Fraser, publicado em National Catholic Reporter a 30 de Agosto de 2022.