Arquidiocese de Braga -

18 março 2022

“Que Deus… nos acorde e nos incomode!”

Fotografia Salama

O Conquistador

Fátima Castro, Equipa Missionária Salama! 2021

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“Tenho uma grande dor no coração” – é desta forma que começa a primeira missiva do Papa Francisco sobre a guerra que se vive na Ucrânia. Este grito leva-nos para outras guerras que assolam o mundo: o conflito no Iêmen e no Afeganistão, a guerra civil na Síria, a crise Rohingya, a tensão nuclear na Coreia do Norte, os ataques armados em Moçambique! Em Cabo Delgado, nos últimos seis anos, ainda não houve cessar-fogo. A violência terrorista, que teve início em Outubro de 2017, provocou até ao momento, cerca de 3 mil mortos e mais de 850 mil deslocados. Destes últimos, mais de 800 pessoas (sobre)vivem nos dois campos de reassentamento que existem na paróquia de Santa Cecília de Ocua. Paralelamente são incontáveis as famílias que continuam a encontrar abrigo nas restantes 98 comunidades da paróquia.

O papá Jona Cândido Paulo vive num dos campos. Fala com uma voz (aparentemente) pousada mas o corpo não consegue disfarçar a dor. Perdeu um dos filhos poucos dias após o natal. Era um jovem, entre muitos, que ficou escondido no mato com a esperança de regressar a Palma, vila que o viu nascer, para recuperar alguns bens da família.

A mamã Estefânia César é uma força da natureza. Gesticula imenso enquanto mistura o português com o maconde. Apesar de manter um sorriso no rosto partilha uma preocupação. A filha, ainda adolescente, está grávida e a mãe doente. Ela sabe que, neste momento, a família depende da resistência dela. Quando lhe pergunto pelo marido, diz-me que “as mulheres e crianças vieram à frente porque eles ficaram a proteger a aldeia.” Muitas mulheres, ainda hoje, continuam à espera de notícias. Estefânia é a mais velha de três irmãs. Três mulheres que fugiram de Quissanga, em setembro de 2021, e cuidam sozinhas de 15 crianças e adolescentes. O olhar esmorecido, dos mais pequenos, denuncia-lhes o sofrimento. Recordo o poema de Augusto Gil, a Balada da Neve, onde ele afirma “que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor? Porque padecem assim?”

Perto da casa da missão vive agora a família do papá Fernando Amisse. Fugiram de Meluco há cerca de dois meses. Atacaram a sua aldeia às 2.20h da madrugada. A hora exata dita o momento em que as suas vidas mudaram para sempre. Sentado na varanda da casa fala-nos do medo que, naquela fatídica noite, paralisou a esposa e lhe tirou as forças para pegar no filho; do tempo que passaram escondidos no mato; dos sobrinhos que, no caminho para Pemba, beberam água envenenada e não sobreviveram; das horas intermináveis debaixo de um intenso sol africano e sem terem o que comer. Perdeu tudo! O bidão de gasolina que guardava em casa - e que iria servir para fugir na mota que tinham - foi o mesmo que lhe destruiu o esforço de uma vida. Com a voz trémula diz que procura esquecer os dias… mas não esquece os momentos.

Hoje… mais do que nunca, o grito é de paz! Na mensagem para a Quaresma, o Papa Francisco diz-nos que este é o tempo propício para nos recordar que a paz, aliás como “o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia”. A paz que tanto precisamos vem, muitas vezes, do amor que tanto nos falta!

Hoje… quando rezo pela paz, vejo o rosto dos papás Paulo e Fernando, da mamã Estefânia (e de tantas outras pessoas); recordo histórias que me contaram, pessoas que perderam a vida, famílias que se viram espoliadas de tudo o que possuíam. Como dizia D. António Couto que “Deus nos abençoe e nos guarde, que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode…” para que jamais deixemos de rezar pela paz na Ucrânia, a paz em Cabo Delgado, a paz no mundo, a paz nos nossos corações!

Artigo publicado no Jornal O Conquistador de 18 de março de 2022.


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