Arquidiocese de Braga -

5 setembro 2022

Direito Canónico adapta-se para uma melhor resposta às vítimas de abuso

Fotografia DR

DACS com Vida Nueva Digital

A participação na formação da resposta institucional às vítimas de abuso, no que diz respeito à resposta jurídica, exige uma atitude de abertura à formação contínua, atenta à evolução legislativa e ao esclarecimento de pontos obscuros ou problemáticos.

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Nos últimos anos temos aprendido a dar uma resposta cada vez mais abrangente, completa e humana às vítimas de abuso sexual em ambientes eclesiais. A aprendizagem não tem sido fácil: não temos as estruturas, os apoios e os meios de que dispõem os Estados. Tampouco tínhamos um aparato regulatório completo e verificado para dar resposta, como o Estado.

Finalmente, e talvez este tenha sido um elemento de especial relevância, nem os nossos líderes (bispos e superiores maiores dos institutos religiosos e sociedades de vida apostólica) tinham formação adequada para isso, nem tinham um corpo de agentes, sacerdotes, pessoas consagradas ou leigos, devidamente formados e em número suficiente, para dar a resposta que devíamos ter dado.

Ao longo do tempo fomos aprendendo, o que significou uma melhoria na nossa capacidade de responder melhor, com maior competência técnica e clareza, e também com maior caridade, às vítimas que bateram às portas das nossas instituições. Nessa aprendizagem, aprendemos a situar melhor o jurídico.

O Direito, tanto o canónico como o estatal, não é toda a resposta que as vítimas esperam e precisam. O que o Direito, tanto o canónico, como o estatal, pode oferecer às vítimas, faz parte da resposta que a Igreja é chamada a dar, uma resposta necessária, importante, de justiça, reparadora... mas também limitada e muitas vezes dolorosa e insatisfatória para alguns, ou até para todos.

 

Resposta necessária

E, no entanto, continua a ser uma resposta necessária. Exige-se também que esta resposta seja rigorosa, ajustada aos procedimentos legais pré-estabelecidos, respeitadora dos direitos das partes e capaz de salvaguardar, ponderando  princípios jurídicos importantes como o direito à tutela jurisdicional efectiva, a presunção de inocência, o direito ao devido processo legal, imediatismo, contradição, etc.

A participação na formação da resposta institucional às vítimas de abuso, no que diz respeito à resposta jurídica, exige uma atitude de abertura à formação contínua, atenta à evolução legislativa e ao esclarecimento de pontos obscuros ou problemáticos.

A autoridade na Igreja não cessou, especialmente nos últimos anos, de aprovar novas normas jurídicas para dar uma melhor resposta às vítimas. Vou referir-me apenas ao âmbito canónico. Com efeito, em cada caso, deve levar-se em conta e relacionar o tempo em que os factos ocorreram e as normas canónicas vigentes naquele momento.

 

Dois exemplos e um marco

Quanto aos exemplos, em primeiro lugar, o conceito de “menor” tem mudado ao longo do tempo. Até 30 de Abril de 2001, uma pessoa com menos de 16 anos era considerada menor. A partir de 30 de abril de 2001, em relação aos crimes cometidos por clérigos, e em virtude do motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela (Sst), a referida idade foi elevada para 18 anos. Assim, uma questão a verificar é sempre se a vítima tinha o estatuto legalmente estabelecido de “menor” naquele momento.

Um segundo exemplo, os prazos da prescrição da acção penal. No que diz respeito aos crimes mais graves, (delicta graviora) cometidos por clérigos, o prazo de prescrição variou ao longo do tempo. A última modificação entrou em vigor a 8 de Dezembro de 2021.

Com esta reforma, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) foi habilitada a revogar o instituto da prescrição em todos os casos de crimes reservados, mesmo para os casos de crimes cometidos antes da entrada em vigor da norma(que, note-se, a CDF já vinha a fazer sem autorização expressa para fazê-lo).

Quanto ao marco, este deu-se pela entrada em vigor, a 8 de Dezembro de 2021, de um novo Livro VI do Código de Direito Canónico, ou seja, o equivalente ao Código Penal na Igreja. O novo Livro VI contém novidades importantes em matérias como a prescrição (para os clérigos, mantêm-se em vigor as normas e prazos assinalados na Sst) no novo cânone 1363.

Os crimes cometidos antes de 8 de Dezembro de 2021 devem ser processados, na sua regulação substancial, de acordo com a Lei em vigor no momento da prática dos actos (a menos que a nova lei seja aplicável por ser uma norma mais favorável). Pelo contrário, os actos praticados a partir de 8 de Dezembro de 2021 devem ser julgados de acordo com a nova redacção do Livro VI.

Nesta linha de discurso, vale a pena lembrar algo que continua a ser objecto de confusão, principalmente nos média, gerando posteriormente sentimentos de frustração e desamparo nas vítimas. As normas do Sacramentorum sanctitatis tutela só se aplicam aos crimes de natureza sexual cometidos por clérigos com menores, não a outros tipos de crimes.

 

Sucessão temporal entre normas

Por fim, uma novidade muito importante e ligada à questão da sucessão temporal entre as normas, é a que foi introduzida no novo Livro VI sobre os religiosos e leigos no contexto dos crimes contra a liberdade sexual da pessoa.

Até agora, o Código de Direito Canónico não classificava esses comportamentos como crimes, o que não significa que a Igreja não os considerasse muito graves ou dignos de punição; para esses casos, como para assassínios, homicídios e tantas figuras criminosas, a Igreja remetia-se, para punição, ao âmbito do direito penal estatal. Agora, com o novo cânone 1398, aplicável apenas a partir de 8 de Dezembro de 2021, um religioso ou um leigo também pode cometer crimes “canónicos” contra a liberdade e a integridade sexual das pessoas.

Artigo de Miguel Campo Ibáñez, publicado em Vida Nueva Digital a 28 de Agosto de 2022.