Arquidiocese de Braga -

1 setembro 2022

“A vida em comunidade missionária é uma proposta exigente”

Fotografia DACS

João Pedro Quesado | DACS

Setembro é sinónimo de recomeço para muitas comunidades e em Ocua não é excepção. A Fátima Castro e o Pe. Manuel Faria voltam à 552ª paróquia da Arquidiocese, e a Joana Peixoto toma o lugar da Andreia Araújo, que esteve quase três anos na missão.

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[Igreja Viva] Como foi este ano de missão em Santa Cecília de Ocua, Diocese de Pemba, Moçambique, tendo em conta que são uma equipa constituída por leigas e um padre que vivem em comunidade?

[Andreia] Foi um ano desafiador, pois tínhamos estado um ano sem um pároco na missão, então este ano tratou-se de uma readaptação pós-pandemia, com muitos desafios, um ano de muito trabalho, mas muito compensador. Viver numa comunidade constituída por um padre e leigas mostrou ser uma mais valia, na qual cada um coloca os seus dons ao serviço dos outros.

[Fátima] Contrariamente às outras paróquias da Diocese de Pemba, onde o trabalho pastoral é assumido por sacerdotes e irmãs consagradas, Ocua é a única paróquia onde a equipa missionária é constituída por duas leigas e dois sacerdotes. A riqueza desta equipa missionária está na diversidade de ministérios que nos faz viver e experienciar aquilo que o Papa Francisco tanto nos pede: tornarmo-nos uma “Igreja Sinodal”, onde nos sentimos capazes de caminhar juntos, na escuta mútua e no diálogo, numa verdadeira corresponsabilidade missionária. Cada um de nós, segundo a nossa vocação específica e experiência pastoral, é convidado a participar ativa e efetivamente na missão comum da Igreja. Em comunidade procuramos ser unidade, comunhão e fraternidade que nos leva à convicção de que não estamos sós. A oração diária é o sustento na missão e o cuidado uns com os outros é permanente - “na alegria e tristeza, na saúde e na doença” - na firme certeza de que no fim do dia, apesar das dificuldades, somos sempre abraçados por Aquele que nos enviou.

[Pe. Faria] Em primeiro lugar, este ano de missão em Santa Cecília de Ocua, foi um retomar da vida normal em comunidade missionária, depois das dificuldades da pandemia e da obtenção dos vistos de entrada em Moçambique, para que toda a equipa de 2021 finalmente a partir de 15 de Agosto estivesse disponível para a missão na paróquia de Ocua. É bom chamar a atenção para este projeto de cooperação missionária Salama!, entre as Dioceses de Braga e de Pemba, o qual tem uma dimensão eclesial que promove uma pastoral muito enraizada na participação e integração de leigos e sacerdotes num modelo de pastoral paroquial realizado em comum, que vai ao encontro da Igreja ministerial que encontramos em Moçambique, onde todos assumem ser Igreja, com os dons e carismas que o Espírito Santo suscita em cada um, para serem colocado ao serviço dos irmãos. Em segundo lugar, quanto à vida em Comunidade Missionária é uma proposta exigente de realizar, durante um ano, aquele modelo das primitivas comunidades cristãs descritas nos breves sumários presentes no Novo testamento, no livro dos Atos dos Apóstolos: são «assíduos no ensinamento dos Apóstolos, na união fraterna, na fração do pão e nas orações» (At. 2, 42). Como os primeiros cristãos somos desafiados a viver como família de Deus, espaço da koinonia, ou seja, da comunhão de amor entre irmãos e irmãs em Cristo. O que significa, na prática estes cristãos escutando a Palavra de Deus, como Maria, praticam relacionamentos interpessoais de alta qualidade de comunhão de vida; fazem memória do Senhor mediante a “fração do pão”, isto é, a Eucaristia, e dialogam em oração comunitária e pessoal com Deus na oração. São estas as atitudes do cristão, as quatro caraterísticas de um bom cristão, que podemos viver em Ocua. Não é fácil, mas como os “bons escuteiros” procuramos “obedecer, obedecer, até nos habituar”, para nosso bem e da Santa Igreja.

[Igreja Viva] Joana, fala-nos um pouco sobre ti... O que fazes? O que te fez querer integrar este projeto e partir em missão?

[Joana] Sou a Joana, tenho 29 anos, sou de Braga, da paróquia da Sé - uma verdadeira menina da cidade! Faço parte da comunidade inaciana de Braga (pertenço a uma CVX, canto no coro...). Gosto muito de ouvir histórias! Sou muito melhor a ouvir do que a falar... Acho que isso também me ajudou a perceber que queria estudar Psicologia. Tenho trabalhado na área social nos últimos anos, e tenho crescido muito por isso. Ia gastar muito espaço aqui para explicar como cresceu o desejo de partir em missão… Mas a resposta mais sincera é que me senti chamada a amar desta forma, através de vários sinais que Deus me foi dando ao longo do tempo, e acreditem que ainda hoje não percebo muito bem porquê! Mas Ele saberá melhor do que eu. Encontrei no Salama! muitos pontos que procurava quando pensava em partir em missão - uma formação responsável, que nos fala de desenvolvimento com respeito à cultura; uma partida em equipa e vida em comunidade; e um amor às pessoas que, para além de se traduzir em trabalho social, também procura aprofundar a fé.

[Igreja Viva] Qual foi o impacto cultural que sentiste nos primeiros tempos na Diocese de Pemba?

[Joana] Acho que ainda estou nos primeiros tempos… Lembro-me que nos primeiros dias me perdia a olhar a terra, as casas, as árvores, os padrões das capulanas... é tudo diferente! Imaginem o resto - a forma de estar, de viver as relações humanas, de viver a relação com Deus… Nada nos prepara para este impacto da diferença. Há coisas que nos deixam maravilhados, e há outras coisas que nos deixam desconfortáveis e até tristes. Tenho encontrado muito consolo em poder fazer perguntas muito honestas às pessoas e aos missionários que estão aqui. Há pouco tempo um missionário disse-me que o segredo para “chegar” aqui é olhar as pessoas. Nem sempre sou assim tão generosa e capaz de pôr as minhas necessidades em segundo plano, mas parece-me um caminho muito bom de se andar, este em que primeiro olhamos as pessoas com muito amor, mesmo que a diferença pareça separar-nos tanto.

[Igreja Viva] De que maneira é que a renovação da casa paroquial e estruturas anexas permitem potenciar o projeto Salama? Qual é o ponto de situação do projeto de colocação de energia solar nos edifícios paroquiais?

[Pe. Faria] Sabemos que o principal objetivo do “Salama” é contribuir para o aprofundamento de laços de comunhão e de partilha espiritual e material entre as Dioceses de Braga e Pemba. Para promover o tão desejado intercâmbio entre leigos, sacerdotes, irmãs e seminaristas, entre as dioceses de Braga e Pemba, temos um grande espaço com as condições básicas para acolher bem quem nos visita ou vem fazer experiência missionária. Para potenciar esta experiência missionária de nova evangelização temos ao dispor as condições necessárias para que estejam bem, por isso, agora precisamos converter-nos numa Igreja que convida: “Vinde e vede” (Jo 1,39).
Quanto à situação da colocação de energia solar nos edifícios paroquiais, Casa /Igreja/centro de saúde) ainda é difícil “ver a luz” deste projeto. Na verdade, temos um projeto bem definido, mas que carece do financiamento e demais burocracias legais, para que se possa concretizar. Durante meses não havia acesso à iluminação da missão durante a noite. Agora já conseguimos voltar a ter luz, devido a um apoio de emergência da nossa Diocese, pelo projeto Salama. Mas ainda não conseguimos conservar alimentos pela falta de um frigorífico e de melhor capacidade energética dos painéis solares e baterias. Os promotores do projeto são cristãos empenhados Paulo Vieira e José Fernandes, promotores de Parques Eólicos, residentes na paróquia de Souto, santa Maria, em Guimarães. Continuam apaixonados por “dar Luz” à missão de Ocua.

[Igreja Viva] De que forma é que a pastoral social, nomeadamente o programa de aleitamento materno e o posto de saúde de Ocua são uma forma de evangelização e de diálogo inter-religioso neste contexto?

[Andreia] Tanto o Posto de saúde como o projeto de apoio ao aleitamento são muito importantes para a comunidade, pois conseguem suprir necessidades básicas de saúde e de nutrição. Para mim, o mais importante em ambos os projetos é o facto de conseguirmos apoiar todos que precisam, independentemente da sua religião. Desta forma assumimo-nos como verdadeiros cristãos, que veem no outro um irmão, e somos exemplo, vendo Deus em todos os que necessitam e praticando a caridade.

[Igreja Viva] Quais são os maiores desafios da formação de catequistas no contexto da Igreja de Moçambique e da Paróquia de Ocua?

[Fátima] João Paulo II, na exortação Apostólica «Catechesi Tradendae» de 1979, afirmava que a finalidade última da catequese “é a de fazer que alguém se ponha, não apenas em contacto, mas em comunhão, em intimidade com Jesus”. O grande desafio é, no meu entender, a consciência de que esta intimidade com Jesus deve nascer, antes de tudo, no coração dos catequistas. Este ministério laical também é uma vocação. Uma vocação que, para que dê frutos, é necessária muita oração e formação. Uma das maiores dificuldades sentidas na formação dos catequistas é, sem dúvida, a barreira linguística: a necessidade de precisar de um tradutor e a incerteza de que a tradução é fidedigna. No entanto isso não esmorece a vontade (e a necessidade) de fazer formação com os catequistas e, prova disso, foi a formação realizada este ano com todos os catequistas da paróquia que estavam a preparar adultos para receber o sacramento da confirmação e a continuidade dos cursos básicos para catequistas. A preocupação pela formação cristã é constante e, lá como cá, passa por iniciar ao conhecimento da fé, à celebração, à vida cristã e à oração. A pluralidade de religiões e seitas, em paralelo com uma enraizada cultura macua (que muitas vezes vai contra os ensinamentos da Igreja), obriga a uma necessidade constante dos catequistas perceberem que, como agentes da Evangelização, agem em nome da Igreja e devem ser fiéis às orientações diocesanas. Todavia, alegro-me pensar que, em muitas das nossas comunidades temos catequistas competentes e perseverantes que, apesar das inúmeras dificuldades, realizam uma missão insubstituível na transmissão e aprofundamento da fé.

[Igreja Viva] Como é que os ataques que se vivem no norte da província de Cabo Delgado têm afetado o dia-a-dia da missão? Afeta a fé das pessoas? E a vossa? O que é que a comunidade cristã de Ocua, a Diocese de Pemba e a Igreja de Moçambique tem feito pelos 800 mil deslocados?

[Andreia] Os ataques em Cabo Delgado originaram uma vaga enorme de deslocados, o que afeta a vida da missão, pois diariamente chegavam, às aldeias e aos campos de deslocados, pessoas que fugiram das suas casas sem nada. Perante a guerra é normal que a Fé seja abalada, ainda mais a fé de um povo que já sofreu tanto e continua a sofrer. Mas mesmo nas maiores tribulações, conseguimos unir-nos, mesmo que sejamos de diferentes religiões, e rezamos todos pela Paz. Conseguimos assim fortalecer a nossa Fé e a das pessoas que nos rodeiam quando percebemos que estamos no sítio certo à hora certa, ou seja, estamos no local e podemos ajudar, muitas vezes encaminhando também apoios, nomeadamente da Cáritas da Diocese de Pemba.

[Fátima] Há pouco tempo num encontro com todos os religiosos da Diocese de Pemba, escutava um sacerdote dizer, a propósito do último ataque em Ancuabe, que os missionários devem ser o rosto da serenidade e da compaixão. Não nego que acompanho, com uma certa angústia, a via crucis deste povo que parece não ter fim. Se, por um lado, esta realidade afeta a fé das pessoas, por outro aumenta a caridade de quantos os acolhem e a esperança de um dia viverem num mundo livre das guerras e com a humanidade unida em busca de um futuro melhor para todos. A paróquia de Santa Cecília de Ocua tem procurado ser testemunho e presença com aqueles que diariamente nos chegam! Em todas as comunidades temos descolados. Contudo, temos uma maior concentração nos dois campos de reassentamento da paróquia: Ocua e Nacivare. Através do Salama!, em parceria com a Cáritas Diocesana, a Comunidade de Sant’Egídio e a Congregação dos Frades Menores Capuchinhos, à qual pertence o Frei António Champoco que está a colaborar na paróquia, este ano foi possível distribuir sementes, materiais agrícolas, materiais escolares, utensílios domésticos e, mais recentemente, produtos alimentares para as famílias que nos chegaram provenientes das aldeias onde decorreram os últimos ataques. É importante salientar que também estão presentes algumas organizações humanitárias que ajudam a colmatar algumas dificuldades. Apesar da Igreja assumir um papel de proximidade desde o início, esta continua a ser uma realidade desafiadora para os nossos recursos humanos e financeiros. Todavia há uma coisa que todos podemos fazer, seja em Moçambique, seja em Portugal ou em qualquer parte do mundo: dobrar os joelhos e rezar pela paz!

[Joana] A Igreja de Moçambique é muito resiliente. Feita de muitas feridas e muitas pessoas que deram a vida por ela. Algo que me tem encantado é esta entrega, de quem não culpa Deus pelo que acontece (até nós nos zangamos muito, na vez deles!) mas de quem procura Nele força para continuar, sabendo que não está sozinho. Por isso a presença dos missionários é tão importante também. É um sinal de que estamos juntos, de que a Igreja não quer deixar ninguém para trás, como nos pede o Papa Francisco.

[Pe. Faria] A Missão da Igreja é defender os mais pobres e excluídos. Várias paróquias estão com muitas dificuldades e sofrem com o terrorismo e sofrimento do seu povo. Mas, com a nossa presença e resiliência, somos sinais de esperança e pedimos a força de Deus para superar tanta miséria e dor. Ao mesmo tempo somos promotores de Justiça, fraternidade e paz. Levamos sempre algum gesto de caridade (sementes, panelas, roupa, alimentos, material escolar) e uma palavra de fé em tempos melhores. A nossa missão de Ocua, no sul da Diocese de Pemba, está já nas margens do rio Lúrio que nos aproxima de locais mais calmos da província de Nampula, e vivemos afastados dos ataques violentos no norte da província de Cabo Delgado.

[Igreja Viva] O que mais te marcou pela positiva durante este ano? E qual foi o maior desafio?

[Andreia] O que mais me marcou pela positiva foi o sentimento familiar de pertença que senti na comunidade. Ao fim do terceiro ano de missão senti-me parte da comunidade e a gratidão que as pessoas transmitiam pela minha presença era indescritível, pois era transmitida através de olhares e gestos muito bonitos. O maior desafio para mim, este ano, foi conseguir gerir o extenso programa paroquial que tivemos com a necessidade de descansar, para não ficar doente facilmente.

[Fátima] O que hoje mais me marcou pela positiva foi também, no início, o maior desafio. Somos um povo que vive à pressa e blindado de certezas. Vive de agendas e do “Dr. Google” que tudo sabe… Somos um povo que usa relógios mas para se aprisionar nas horas. Eu também sou (ou era) muito assim. Encontrei, em Moçambique, um povo e uma cultura diferente que me obrigou, em algumas situações, a cultivar, em mim, o fruto da longanimidade. Caminhar com um povo e colocar-me no ritmo de sua história implicou aprender a saber ‘esperar com paciência’ pois, em muitas situações, dar tempo também é dar amor. A missão não tem horários. Mesmo cansada ou um pouco doente, procurei não deixar de me fazer presente quando precisavam de mim porque sempre senti Alguém superior a mim que me ajudava a aguentar os momentos difíceis e a não desistir. Nesta doação, e nas relações que fui criando com o povo da paróquia e não só, fui descobrindo, maravilhada, que o Espírito Santo sopra de uma forma surpreendente e me coloca em permanente escuta das preocupações que o povo me trás, atuando como sinal de esperança e de alento. Só preciso não insonorizar o coração. O resto vem por osmose pois o mundo não muda por nós, mas muda em nós!

[Pe. Faria] A vida missionária! Viver numa missão é uma graça muito grande, um dom de Deus, um Sim de Amor a Deus e ao próximo. Mas a maior gratidão da vida missionária é perceber que a minha vida é testemunho da vida de Jesus, que passou a vida fazendo o bem, isto é, a renascer a esperança, o sorriso, a alegria de viver, a sentirem-se muito amados e chamados a amar os seus irmãos, como Jesus os ama. É um ano de uma vida que jamais se pode esquecer.
Para mim a parte mais difícil é aprender a ser humilde, seja na vida da comunidade missionária ou na vida paroquial, sem nunca me sentir humilhado pelo fracasso, pois nunca serei capaz de fazer o que somente Deus pode me ajudar. Há muita coisa que posso melhorar e posso contar com “Aquele que meu coração ama”, pois só unido ao Amor de Jesus, com vida diária de oração, se torna possível, amar e não desesperar na frustração de não entender a língua, tanta aldrabice dos nossos animadores das comunidades, tanto sofrimento das nossas famílias cristãs, tantas dificuldades para chegarem à missão, tantas caminhadas e canseiras, fome e doenças dos nossos cristãos mais empenhados. O Coração sofre e a alma dói nesta terra do “fim do mundo”!

[Igreja Viva] O que vos leva ficar mais um ano em missão?

[Fátima] Karl Rahner, no livro “Deus que me enviou” manifestava uma preocupação que também a tomei como minha: “Oh Deus, como podem os homens reconhecer-Vos em mim?” Vivi este ano na procura de ser e de reconhecer o rosto de Deus naqueles que encontrava. Perante algumas adversidades, questionei-me muitas vezes: o que faria Jesus se fosse com ele? A alegria de viver o Evangelho de uma forma mais séria e mais coerente, vivendo a caridade e o amor ao próximo, parece-me sempre um “processo inacabado”. Ainda há tanto para fazer! Encontrei muitas vezes Deus e Jesus Cristo nos pobres, nos necessitados e naqueles que continuam a morrer perante a indiferença e o desprezo de uma nação pobre que, em vez de produzir riquezas, produz novos ricos… Perante o conhecimento de tantas desigualdades sociais, sem cair em atitudes maternalistas, é impossível colocar-me à margem dos problemas deste povo. Os pobres são sempre os preferidos de Deus. Por isso, como não me entregar a eles sem condições ou meias medidas? Ainda há muitas histórias que não foram contadas e experiências que não foram vividas!

[Pe. Faria] A evangelização e a formação cristã numa das Igrejas mais necessitadas, que pedem uma missão mais estável da equipa missionária.

[Igreja Viva] O que muda na tua vida depois desta missão?

[Andreia] Tudo muda. Eu já não sou a mesma pessoa, vejo a vida de outra forma, aprendi muito e ganhei muitas aptidões ao longo da missão. Assim como a minha espiritualidade também se moldou, o que me faz agora viver de uma forma diferente, depois de tudo que vi, vivi e acolhi.

[Igreja Viva] O que esperam da vossa comunidade e da Arquidiocese de Braga, que vos envia?

[Andreia] Espero agora no regresso um acolhimento em vista a aplicar tudo que aprendi e tive o privilégio de viver.

[Fátima] Arquidiocese, comunidade e missão formam um trio inseparável. Não há outro caminho possível a percorrer. A vocação missionária nasce e cresce na comunidade. Ninguém é missionário sozinho. Quando parti, a minha comunidade partiu comigo. A mesma comunidade que me viu nascer e crescer (e, no ano passado, partir em missão) foi a mesma comunidade que me acolheu agora (com muitos abraços e uma alegria contagiante) e me fez sentir ao longo do ano a sua presença através da oração. “Continuo a sonhar com uma Igreja toda missionária”, disse o Papa Francisco na mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2022. Que a nossa Arquidiocese, através do CMAB mas não só, continue ser exemplo de uma Igreja missionária, um Igreja em saída, que se afasta do comodismo e toma iniciativa de ir ao encontro daqueles que mais precisam de se sentirem amados e acolhidos por Deus. Frequentemente, na oração da noite em Ocua, rezamos a Nossa Senhora, Rainha das Missões. Que Maria, através das nossas comunidades, escute o nosso pedido: “Dai-nos muitos e santos missionários!”

[Joana] Gostava muito que nos acompanhassem neste caminho! Nos ajudassem a conhecer e dar a conhecer a paróquia de Santa Cecília de Ocua, bem como as paróquias de Braga. Que nos façam perguntas, que se inquietem com os problemas destes irmãos, que rezem por eles, que fiquem mais próximos! Um dos primeiros pedidos que me fizeram aqui foi “Conta-me notícias de Portugal!”. Temos deste lado pessoas que querem estar unidas a nós.

[Pe. Faria] Que nasçam mais voluntários missionários para renovar anualmente a equipa missionária da Arquidiocese de Braga a quem está confiada a paróquia de Santa Cecília de Ocua, na Diocese de Pemba. Espero que continuem a fortalecer a missão com a sua oração e uma Diocese que não esqueça a importância desta missão tão longe do olhar, mas tão perto do coração missionário da Igreja. Há sempre o grande objetivo que a diocese acolha esta paróquia de Ocua, se aproprie desta missão, desta paróquia, e que vá seguindo e acompanhando unida em oração e generosidade.

[Igreja Viva] Tendo em conta que a Diocese de Pemba está a celebrar 100 anos de evangelização, quais são as principais diferenças entre a Igreja de Pemba e a Igreja de Braga, de antiga fundação?

[Andreia] Para mim, as principais diferenças residem na estrutura da Igreja, e no método de trabalho. Em Pemba, e em Moçambique, a Igreja é Ministerial, os vários Ministérios são assumidos por Leigos nas suas comunidades, que são geridos depois a nível Paroquial. A grande diferença encontra-se no facto de os leigos assumirem cargos de responsabilidade e trabalharem mais independentes do Pároco, ao contrário do que acontece na Igreja em Braga.

[Fátima] Vários séculos separam a génese destas duas Igrejas por isso as diferenças são notórias! Vivemos, em Moçambique, a experiência de uma verdadeira Igreja Ministerial. A falta de sacerdotes (neste momento são 14 os padres diocesanos para uma área geográfica que corresponde, mais ou menos, a Portugal) faz com que a Igreja dependa muito do trabalho dos leigos. A Diocese de Pemba assenta neste modelo da Igreja Ministerial, onde cada membro assume a própria responsabilidade. A ausência de padres não esmorece a fé deste povo. Todas as comunidades são animadas por inúmeros ministérios que a partir dos leigos - animadores da palavra, ministros extraordinários da sagrada comunhão, catequistas, animador dos Jovens ou infância missionária, Cáritas, Justiça e paz - colocam toda a Igreja em movimento! Todavia, a formação destes leigos ainda é muito insuficiente, seja ela humana, teológica ou bíblica. O relatório do sínodo demonstrou que esta também é uma realidade em Portugal: a necessidade de uma formação “contínua de leitores, cantores e acólitos”. O que D. Inácio Saúde pediu para a Diocese de Pemba, na celebração de ação de graças pelos 100 anos da Missão de Santa Maria de Namuno, - “todos e cada um/a de nós terá de trabalhar arduamente como se tudo dependesse apenas do seu trabalho e, ao mesmo tempo, pedir sempre o auxílio de Deus como se tudo dependesse apenas do auxílio de Deus” - o mesmo é pedido aos cristãos da Arquidiocese de Braga. Como alguém me dizia: “a Igreja conta com todos, precisa de todos, é feita com todos e haverá sempre lugar a todos.”

[Joana] Haverá muito a dizer sobre a estrutura e a forma. A mim tem-me fascinado a iniciativa dos leigos em tomar nas suas mãos o destino das suas paróquias, ainda que haja muito caminho a percorrer e seja importante apostar na formação. Mas mesmo assim - faltando padres, faltando formação, faltando recursos, faltando em muitos sítios capelas que aguentem as tempestades - a verdade é que o Espírito Santo parece que não desiste de dar alento a estas comunidades cristãs, e ir também chamando missionários que não deixam que este ânimo se perca.

[Pe. Faria] A paróquia de Santa Cecília em Ocua, Diocese de Pemba, é já considerada pelos nossos cristãos como a paróquia 552 da Arquidiocese de Braga. Todos sabem que a presença missionária é ainda necessária nos dias de hoje nas Igrejas mais jovens. A Igreja de Pemba é uma Igreja Jovem, cheia de ardor missionário, vivem como as primitivas comunidades cristãs, numa Igreja ministerial, mas na verdade fragilizada pela grande pobreza humana, espiritual e material. Falta educação escolar, formação humana e cristã ao povo de Deus! A sua força está no acolhimento das congregações religiosas que oferecem as equipas missionárias que assumem as paróquias desta Diocese de Pemba, e acrescentam na evangelização com o pouco clero local, aqui existente. Os missionários fazem bem a ligação entre a pastoral e o social. Mostram uma Igreja que se realiza nas obras de caridade. “É por aqui que saberão que sois meus discípulos”, diz Jesus. Aprendemos a viver como diz o Papa, numa igreja sempre em saída da liturgia dos templos, para a liturgia da caridade, esta é a missão que Jesus nos confiou. Para termos credibilidade temos que ser melhores do que os outros na oferta que fazemos. No meio de muçulmanos e seitas, encantamos pela atenção a todos, fazendo projetos sociais para todos, e nunca apenas para os cristãos. Com as celebrações da Palavra dominicais na ausência do padre, com exéquias presididas por leigos, preparação de Batismos e casamentos feitos por leigos, vemos uma Igreja em caminhada sinodal, onde todos fazem a Igreja acontecer na comunidade onde vivem. Ao domingo há celebrações dominicais nas 98 Igrejas das comunidades que pertencem à paróquia de Ocua. Durante o ano talvez o Padre venha algumas vezes para celebrar, mas todos os domingos há celebração. Os leigos não esperam, nem se demitem de celebrar o domingo! Assumem o evangelho e vivem a fé como as primeiras comunidades cristãs. Na Igreja da nossa Diocese de Braga, Igreja de referência universal, tudo é realmente feito com mais qualidade e organização, mas se o padre deixar de visitar algumas das suas Igrejas todas as semanas, os cristãos fazem a celebração da palavra dominical? Parece-me uma possibilidade formar animadores da Palavra, animadores da comunidade, que animam a vida espiritual das suas comunidades. Em Pemba o caminho cristão faz-se sempre a partir de baixo, dos ministérios laicais e nunca de cima, dependendo da disponibilidade do padre. Gostaria que se começasse a preparar os leigos e os padres para um novo modo de ser igreja. É todo este esquema que era preciso desmontar e pensar. Esta é uma experiência de Igreja feita na paróquia de Ocua.

Entrevista publicada no Suplemento Igreja Viva de 01 de setembro de 2022.


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