Arquidiocese de Braga -
3 maio 2022
Entrevista com o Papa Francisco: “Putin não pára, quero encontrá-lo em Moscovo. Não vou a Kiev agora”
DACS com Corriere della Sera
Entrevista com o Papa Francisco: “Ainda não recebemos uma resposta de Putin. Zelensky? Liguei-lhe no primeiro dia do conflito, mas agora não é hora de ir a Kiev. Falei durante 40 minutos com o Patriarca Kirill, disse-lhe: não somos clérigos do Estado. A I
Hoje o Papa Bergoglio terá que fazer uma pequena intervenção, uma infiltração, para superar uma dor que não lhe permite mover-se, participar da forma como gostaria nas audiências e encontros com os fiéis.
“Tenho um ligamento rompido, vou fazer uma operação com infiltrações e vamos ver. Estou assim há algum tempo, não consigo andar. Antigamente os Papas iam com a sede gestatória. Também é preciso um pouco de dor, humilhação...”.
Mas esta não é a principal preocupação do Pontífice. Falar sobre o que está a acontecer no coração da Europa é que o atormenta. “Parem”, parem a guerra, é o apelo que tem gritado desde 24 de Fevereiro passado, quando os exércitos russos invadiram a Ucrânia e a morte e a destruição se tornaram um elemento terrível das nossas vidas europeias. Repete de novo o apelo. Com o desânimo de quem vê que nada está a acontecer.
Há uma veia de pessimismo nas palavras com que Bergoglio recorda os esforços que está a fazer, juntamente com o Secretário de Estado da Santa Sé, Pietro Parolin (“Um verdadeiro grande diplomata, na tradição de Agostino Casaroli, sabe como mover-se nesse mundo, confio muito nele”), para pelo menos obter um cessar-fogo.
O Pontífice alinha todas as tentativas e repete várias vezes que está pronto para ir a Moscovo. “No primeiro dia da guerra, liguei ao presidente ucraniano Zelensky, mas não a Putin. Falamos em Dezembro no meu aniversário, mas desta vez não, não lhe liguei. Eu queria fazer um gesto claro para o mundo inteiro ver e por isso fui até ao embaixador russo. Pedi que me explicassem, disse «por favor, parem». Então pedi ao Cardeal Parolin, depois de vinte dias de guerra, que enviasse a Putin a mensagem de que eu estava disposto a ir a Moscovo. Claro, era necessário que o líder do Kremlin permitisse algumas janelas. Ainda não recebemos uma resposta e continuamos a insistir, mesmo que eu tema que Putin não possa e não queira ter este encontro agora. Mas como se faz para não parar tanta brutalidade? Há vinte e cinco anos, vivemos a mesma coisa com Ruanda”, afirmou.
A NATO e o Kremlin
A preocupação do Papa Francisco é que Putin, por enquanto, não pare. Também tenta pensar nas raízes deste comportamento, nas razões que o empurram para uma guerra tão brutal. Talvez “o latido da NATO à porta da Rússia” tenha levado o chefe do Kremlin a reagir mal e desencadear um conflito. “Uma raiva que não sei dizer se foi provocada, mas talvez facilitada, sim”, interroga-se.
E agora aqueles que se preocupam com a paz deparam-se com a grande questão do fornecimento de armas pelas nações ocidentais à resistência ucraniana. Uma questão com que nem todos concordam, que divide o mundo católico e pacifista.
O Pontífice parece duvidoso, a sua doutrina sempre teve no centro a recusa da corrida ao armamento, o não à escalada na produção de armas que mais cedo ou mais tarde alguém decide testar em campo, causando morte e sofrimento.
“Não posso responder, estou muito longe, à questão de saber se é correcto fornecer armas aos ucranianos. O que está claro é que as armas estão a ser testadas naquela terra. Os russos sabem agora que os tanques são de pouca utilidade e estão a pensar noutras coisas. As guerras são travadas para isso: para testar as armas que produzimos. Este foi o caso na Guerra Civil Espanhola antes da Segunda Guerra Mundial. O comércio de armas é um escândalo, poucos se opõem a isso. Há dois ou três anos, chegou a Génova um navio carregado de armas que tiveram de ser transferidas para um grande cargueiro para transportá-las para o Iémen. Os trabalhadores portuários não quiseram fazê-lo. Disseram: vamos pensar nas crianças do Iémen. É uma coisa pequena, mas um gesto bonito. Deveria haver muitos assim”.
As palavras de Francisco, na conversa, regressam sempre ao que é mais justo fazer. Muitos pediram-lhe o gesto simbólico de uma visita à Ucrânia. Mas a resposta é clara: “Não vou agora a Kiev. Enviei o Cardeal Michael Czerny, (prefeito do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral) e o Cardeal Konrad Krajewski, (Esmoleiro do Papa), que lá foram pela quarta vez. Mas sinto que não preciso ir. Primeiro tenho que ir a Moscovo, primeiro tenho que encontrar-me com Putin. Mas também sou padre, o que posso fazer? Faço o que posso. Se Putin abrisse a porta…”, explica.
A Igreja Ortodoxa
Poderia o Patriarca Kirill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, ser o homem que pode persuadir o líder do Kremlin a abrir uma porta? O Pontífice abana a cabeça e diz: “Falei com Kirill durante 40 minutos via Zoom. Durante os primeiros vinte, com uma folha na mão, ele leu-me todas as justificações para a guerra. Escutei e disse-lhe: não percebo nada disso. Irmão, não somos clérigos de Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas a de Jesus. Somos pastores do mesmo povo santo de Deus. Para isso devemos buscar caminhos de paz, para acabar com o fogo das armas. O Patriarca não se pode transformar no acólito de Putin. Eu tinha um encontro marcado com ele em Jerusalém no dia 14 de Junho. Seria o nosso segundo cara a cara, nada a ver com a guerra. Mas agora ele também concorda: vamos parar, pode ser um sinal ambíguo”.
A Via Crucis
O perigo de uma guerra mundial aos bocados, para o qual o Papa Bergoglio alertou nos últimos anos, está, portanto, a tornar-se algo que deve abalar a consciência de todos. Porque, para o Pontífice, também estamos além dos pequenos pedaços, estamos numa realidade que pode realmente levar a uma guerra mundial.
“O meu alarme não foi um mérito, mas apenas um reconhecimento da realidade: Síria, Iémen, Iraque, uma guerra atrás da outra em África. Há interesses internacionais em cada pedaço. Não se pode pensar que um estado livre possa fazer guerra a outro estado livre. Na Ucrânia foram os outros que criaram o conflito. A única coisa que é atribuída aos ucranianos é que eles reagiram em Donbass, mas estamos a falar de há dez anos. Esse argumento é antigo. Claro que são um povo orgulhoso. Por exemplo, na Via Crucis duas mulheres, uma russa e outra ucraniana, tinham de ler a oração juntas e fizeram disso um escândalo. Então liguei ao Krajewski, que estava lá, e ele disse-me: pare, não leia a oração. Elas estão certas, mesmo que não entendamos completamente. Então permaneceram em silêncio. Têm uma susceptibilidade, sentem-se derrotados ou escravizados porque na Segunda Guerra Mundial sofreram muito. Tantos homens mortos, é um povo mártir. Mas também estamos atentos ao que pode acontecer agora na Transnístria”.
A espera de 9 de Maio
A conversa sobre a guerra chega ao fim e a síntese parece pessimista: “Não há vontade suficiente para a paz, a guerra é terrível e devemos gritar. Por isso quis publicar um livro com Solferino que tem como subtítulo A coragem de construir a paz”. Orbán, quando o encontrei, disse-me que os russos têm um plano, que tudo irá terminar a 9 de Maio. Espero que seja esse o caso, para que também entendamos a velocidade da escalada destes dias. Porque agora não é só Donbass, é a Crimeia, é Odessa, é tirar o porto do Mar Negro à Ucrânia, é tudo. Estou pessimista, mas devemos fazer todos os gestos possíveis para parar a guerra”, diz Francisco.
A política de Roma
O olhar também está voltado para as acções que o nosso país pode implementar. “A Itália está a fazer um bom trabalho. A relação com Mario Draghi é boa, é muito boa. No passado, quando ele estava no Banco Central Europeu, eu pedi-lhe conselhos. Ele é uma pessoa directa e simples. Eu admirava o Giorgio Napolitano, que é óptimo, e agora admiro muito o Sergio Mattarella. Respeito muito Emma Bonino: não partilho as suas ideias, mas ela conhece a África melhor do que ninguém. Diante desta mulher eu digo, chapeau”, afirma o Pontífice.
Não quer falar muito sobre política e sobre políticos italianos. Recomenda a todos seriedade e capacidade de administrar os sucessos do momento que muitas vezes se tornam efémeros. Ainda há tempo, no final da entrevista, para fazer um balanço da mudança na Igreja, desafio ao qual se dedicou e se empenhará ao máximo.
“Muitas vezes encontrei uma mentalidade pré-conciliar que se disfarçava de conciliar. Em continentes como a América Latina e África era mais fácil. Na Itália talvez seja mais difícil. Mas há bons padres, bons párocos, boas freiras, bons leigos. Por exemplo, uma das coisas que tento fazer para renovar a Igreja italiana é não mudar muito os bispos. O Cardeal Gantin disse que o bispo é o esposo da Igreja, todo o bispo é o esposo da Igreja por toda a vida. Quando há o hábito, é bom. É por isso que tento nomear sacerdotes, como aconteceu em Génova, Turim, Calábria. Acredito que esta seja a renovação da Igreja italiana. Agora a próxima assembleia terá que escolher o novo presidente da CEI, procuro encontrar alguém que queira fazer uma boa mudança. Prefiro que seja um cardeal, que tenha autoridade. E que tenha a possibilidade de escolher o secretário, que pode dizer: quero trabalhar com esta pessoa”.
O último pensamento é para o Cardeal Martini, de quem o Papa releu um artigo “perfeito”, depois do 11 de Setembro, sobre terrorismo e guerra.
“É tão relevante que pedi para republicá-lo no Osservatore Romano. Continuar nos jornais a investigar a realidade, a contá-la. É um serviço ao país pelo qual sempre lhe agradecerei”, conclui.
Texto de Luciano Fontana, publicado no Corriere della Sera a 3 de Maio de 2022.
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