Arquidiocese de Braga -
11 março 2022
Há alguma hipótese de paz? A diplomacia do Vaticano e a guerra na Ucrânia
DACS com The Tablet
Existe algum papel para o Papa para ajudar a acabar com a guerra na Ucrânia?
O horror da guerra na Ucrânia continua a dominar o mundo. Cidades estão a ser bombardeadas, crianças estão a ser mortas e mais de dois milhões de pessoas já foram forçadas a fugir das suas casas. A ameaça de um completo conflito nuclear aproxima-se perigosamente. Embora haja intensa angústia, tristeza e fúria, a liderança global é escassa. Um cessar-fogo parece cada vez mais remoto.
No meio da escuridão, o Papa Francisco pode oferecer um vislumbre de esperança. No Domingo passado, falando às multidões na Praça de São Pedro, disse que a Santa Sé está “pronta para fazer tudo” para devolver a paz. A oferta do Papa está a ser levada a sério. Na terça-feira, o secretário de Estado, o cardeal Parolin, e Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriornas da Rússia, falaram por telefone.
O Vaticano tem uma longa experiência na mediação de conflitos. Francisco ajudou a normalizar as relações entre os Estados Unidos e Cuba, facilitou o caminho para as eleições na República Centro-Africana e reuniu os líderes em guerra do Sudão do Sul. Muito desse trabalho acontece nos bastidores. Na quarta-feira de Cinzas – o dia em que o Papa pediu aos cristãos que oferecessem o seu jejum e oração pela paz na Ucrânia – sentei-me com o arcebispo Claudio Gugerotti, embaixador Papal na Grã-Bretanha, para descobrir como é que a Santa Sé está a trabalhar para tentar mediar a paz na Ucrânia. Como é que, perguntei-lhe, o Papa Francisco poderia fazer a diferença?
“Houve muitas tentativas da Santa Sé para tentar evitar esta guerra”, diz-me, enquanto conversamos na sala de estar da Nunciatura Apostólica em Wimbledon, sudoeste de Londres. “Às vezes foram bem sucedidas, outras não. Mas o próprio facto de eles [a Rússia] aceitarem a Santa Sé, e o Papa em particular, como interlocutor, já é algo muito especial, porque o que acontece nestas guerras é que ninguém está a procurar um interlocutor. Toda a gente está a procurar um inimigo.”
No Verão passado, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, disse que o Vaticano seria “o local ideal” para conversas com a Rússia, e entende-se que havia uma proposta para os líderes dos países assinarem um acordo de paz em Roma, embora isto nunca se tenha materializado. Francisco encontrou-se três vezes com o presidente Vladimir Putin e o Vaticano mantém relações diplomáticas com a Rússia e a Ucrânia. Embora os ucranianos tenham dito que gostariam de receber a mediação da Santa Sé, a Rússia não deu nenhuma indicação.
“O presidente Putin ouve o Papa, não posso dizer nada além disso”, explica o Arcebispo Gugerotti. Sublinha que Putin tem um “certo tipo de respeito” por Francisco e pela sua autoridade moral. Gugerotti entende como funcionam estas negociações. Diplomata altamente experiente e especialista na Europa Oriental e na região do Cáucaso, de 2015 a 2020 serviu como Núncio Apostólico na Ucrânia e antes disso foi representante papal na Bielorrússia. Foi Núncio na Geórgia durante o conflito russo-georgiano de 2008. Enquanto esteve na Bielorrússia, foi o único diplomata capaz de visitar os presos políticos do país, negociando directamente em seu nome com o presidente Alexander Lukashenko. Também conheceu Putin e Lavrov. No final de 2020, foi enviado à Bielorrússia como enviado Papal especial para conversar com Lukashenko sobre a situação do Arcebispo exilado Tadeusz Kondrusiewicz. Logo após a reunião de Gugerotti com o líder da Bielorrússia, Kondrusiewicz regressou à Bielorrússia.
O diplomata de 66 anos, nascido em Verona, ganhou uma bolsa de estudos para estudar inglês em Londres quando era adolescente e fala inglês fluentemente. Também fala russo, arménio e francês, e é um especialista nas liturgias das Igrejas Ortodoxas Orientais. Trabalhou na Congregação para as Igrejas Orientais da Santa Sé e leccionou no Pontifício Instituto Oriental antes de o Papa João Paulo II o nomear Núncio na Geórgia, Arménia e Azerbaijão em 2001. Gugerotti é um diplomata nos moldes de Francisco, combinando abertura, cordialidade pastoral e humor com um olhar astuto para detalhes e situações.
Os líderes políticos orientais “tendem a ser muito enigmáticos”, mas a diplomacia Papal é eficaz, diz, porque envolve as pessoas ao nível pessoal e espiritual. “A abordagem do Vaticano é invocar um gesto ou uma palavra do Espírito Santo que pode entrar no coração da outra pessoa. Em algumas situações, eu não conseguia pronunciar uma única palavra, e de repente a palavra sai”. O nosso “sistema”, diz-me o experiente diplomata do Vaticano, é “o homem de fé, sabendo como funcionam o diálogo e a negociação, sair do padrão comum e entrar numa linguagem que pode derreter corações”.
Fala-se de Francisco fazer uma missão de paz na Ucrânia com outros líderes religiosos. Isso pode acontecer? “Tudo é possível”, diz Gugerotti. “A questão é se é útil neste momento”. O Papa “nunca é um interlocutor político” e usar as Igrejas para pressionar um governo “não é uma política vencedora”. Por outras palavras, ambas as partes precisam de estar prontas para se sentarem à mesa. “O que o Papa quer evitar é criar mais divisões. Sempre que há um pedido comum, e ele consegue ver que o seu papel será praticamente positivo, no dia seguinte, o Papa parte – talvez até durante a noite”.
Antes do Concílio Vaticano II, o trabalho diplomático da Santa Sé concentrava-se em servir os interesses da Igreja. Agora, “o papel do Papa tornou-se um suporte universal para a paz”. E porque “estamos num deserto de figuras morais”, Gugerotti argumenta que a posição do Papa como líder moral no cenário mundial é ainda mais crucial. “Ele representa uma enorme autoridade moral, incluindo para os não crentes… o papel é o de uma pessoa e uma instituição que luta pelo bem e contra o mal, e não tem nada a oferecer em troca. Sem interesse pessoal, sem armas, sem nenhum tipo de economia. É apenas a força do Evangelho”.
No Domingo passado, Francisco rebateu a narrativa russa de que o conflito na Ucrânia era uma “operação militar especial”, descrevendo-o como uma “guerra” na qual “correm rios de sangue e lágrimas”. Foi a linguagem mais dura que usou até hoje e aconteceu depois de ele dar o passo sem precedentes de fazer uma visita pessoal à Embaixada da Rússia na Santa Sé para expressar a sua preocupação.
Francisco enfrentou críticas por não oferecer uma condenação explícita da Rússia ou do presidente Putin. Gugerotti disse que a abordagem do Papa não é novidade, ressaltando que “por vezes os Papas foram repreendidos” por não se manifestarem em tempos de guerra. A pairar sobre a nossa conversa está a sombra de Pio XII, que continua a enfrentar intenso escrutínio sobre as alegações de não ter falado com força suficiente contra as atrocidades nazis, mesmo enquanto trabalhava para salvar vidas judias nos bastidores.
Quando se trata de mediação, o arcebispo Gugerotti diz que “os pecados da pessoa devem ser sempre rejeitados”. Sobre isso, “temos que ser muito francos”. A guerra na Ucrânia é “terrível” e “absolutamente inaceitável”. Ao mesmo tempo, o papel da Igreja é também ser uma “ponte de amor e respeito” e evitar simplesmente cair na retórica. “O objectivo da Santa Sé é ser sempre uma possibilidade extrema quando todas as outras possibilidades expiraram. Se pronuncias uma palavra de rejeição, essa possibilidade expira”, explica. “O Papa e a diplomacia do Vaticano têm sempre que mostrar que, apesar de tudo, respeitam cada parceiro como ser humano. Essa é a pré-condição de ter um papel possível [na mediação]. Se um terceiro está a rejeitar absoluta e claramente um lado, considerando-o monstruoso, então a pessoa não aceita envolver-se, porque a pessoa não se sente aceite.” Não se trata, acrescenta, de procurar aplausos. “O Papa é velho, não tem glória humana para procurar”, diz Gugerotti. “A Igreja irá continuar enquanto preservar o seu papel de guia moral”.
O Papa trabalhou arduamente para aprofundar os laços com a Igreja Ortodoxa Russa. Em 2016, teve um encontro histórico com o Patriarca Kirill em Havana, Cuba. No entanto, o Patriarca de Moscovo, que é próximo de Putin, apoiou a invasão da Ucrânia e até a vinculou a uma batalha contra as paradas pelos direitos dos homossexuais. O que é que, pergunto, o Papa diria a Kirill se o encontrasse agora? O Núncio diz que Francisco “provavelmente” lhe pediria para rezar com ele e depois para “sair dos palácios e ir até às pessoas que estão a sofrer e apenas ficar com elas, abençoá-las e pedir a Deus justiça e paz”. Embora falar com Kirill possa ser “útil”, Gugerotti acredita que a resposta mais eficaz seria as Igrejas Católica e Ortodoxa trabalharem juntas. Em 2018, esteve envolvido na distribuição dos 16 milhões de euros arrecadados depois de o Papa pedir uma colecta especial em toda a Europa para todos os ucranianos. “Isto é ecumenismo”, diz o arcebispo. “A linguagem da fé e pertença a uma população onde a Igreja vive é muito mais forte do que qualquer tipo de ideologia política”.
O arcebispo Gugerotti viu por si mesmo o longo conflito na Ucrânia. Visitava regularmente a área de Donbas para oferecer apoio pastoral às pessoas, algumas das quais viviam na clandestinidade. Permanece em contacto regular com pessoas na Ucrânia. Acredita que há uma “obrigação moral” de o Reino Unido acolher aqueles que fogem do conflito. Embora reconheça a necessidade de “prudência”, diz: “Nunca fomos tão prudentes com outras pessoas por serem ricas”. Acrescenta: “Não devemos ter medo dos migrantes mais pobres, porque alguns dos mais ricos provavelmente eram mais perigosos para o nosso país”.
Sugere que olhar para o que aconteceu logo após o colapso da União Soviética ajuda a entender a guerra na Ucrânia. As pessoas ficaram famintas, os oligarcas estavam a comprar indústrias para nada e, em vez de ajudar os russos comuns, “continuámos a mostrar que tínhamos medo deles”. Isto não justifica o que aconteceu, diz, mas ajuda a “explicar uma espécie de perigo persistente da guerra”.
Apesar do rio de sangue e lágrimas, o arcebispo Gugerotti continua esperançoso nos esforços de paz do Papa. “Tenho visto tantas coisas acontecerem que eram totalmente inesperadas”, diz. “Acredito muito em milagres”.
Artigo de Christopher Lamb, publicado a 10 de Março de 2022 no The Tablet.
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