Arquidiocese de Braga -
13 janeiro 2022
“Ouvir os outros afecta-me e transforma-me”
DACS com La Croix International
Entrevista com uma Religiosa e Psicanalista sobre a arte de ouvir, elemento essencial do processo sinodal que o Papa Francisco convocou para a Igreja.
Isabelle Le Bourgeois não é uma Irmã religiosa típica. Depois de se formar em Direito na década de 1970 em Paris, estava a desbravar terreno no mundo como uma empresária de muito sucesso.
Mas, no Domingo de Páscoa de 1981, por acaso parou numa igreja de uma vila perto da sua casa de campo e algo que o padre disse durante a homilia mudou-a para sempre. “Deus ama-te e tu não sabes”, disse ele.
Dezoito meses depois, Le Bourgeois entrou na “Society of Helpers” uma comunidade de Irmãs apostólicas de inspiração Inaciana fundada em Paris em 1856. Enquanto estudava Teologia, também ficou fascinada por Psicologia e acabou por se tornar Psicanalista. Além disso, serviu muitos anos como Capelã da prisão.
E uma das coisas em que se tornou muito boa foi a ouvir, algo que está no centro do processo sinodal que o Papa Francisco está a tentar trazer à vida na Igreja.
La Croix: Existe um pré-requisito para ouvir os outros?
Isabelle Le Bourgeois: Sim, antes de tudo, precisas de te preparar internamente para ouvir. Quero ouvir o que a outra pessoa tem a dizer? Estou ciente de que ela é diferente de mim e que, ao ouvir, entrarei numa relação com ela? Isso leva-me a outra questão de grande profundidade...
Qual?
A que Deus pergunta a Adão no Jardim do Éden: “Onde estás?” (Gn 3,9). Sim, onde estou eu comigo mesma, com os outros, com Deus? Quem és tu, que estás aqui? Estou pronta para aceitar a tua resposta, que inevitavelmente mudará alguma coisa no nosso relacionamento? Porque ouvir é ser-se afectado…
Afectado, em que sentido?
Quero dizer tocado, transformado por esta escuta. Tocado a nível afectivo, emocional e pessoal. Significa também aceitar o desconhecido: não sei o que vai acontecer durante a escuta. Cada encontro, com as pessoas que se vêm sentar nesta cadeira ou deitar neste sofá, é novo, diferente do anterior. Eu mesma não estou no mesmo estado de espírito, na mesma forma física. Posso sentir alegria, entusiasmo, admiração, mas também cansaço, cansaço e até, em alguns casos, desgosto. Desde há vários anos que tenho recebido aqui pessoas maltratadas e abusadoras também. Às vezes, tenho a sensação de estar sobrecarregada. As minhas vísceras e o meu corpo são afectados...
Como se livra dessa sensação de assoberbamento?
Para começar, limito o número de vezes que escuto este tipo de material. Dado o meu duplo papel de mulher na Igreja e de Psicanalista, procuram-me muitas vezes. Estou a aprender a dar leveza à minha vida graças a coisas tão diferentes como o convívio, a solidão, o caminhar, a leitura.
E a oração?
A oração é um assunto separado. É o pilar do meu dia. Pode assumir muitas formas. Rezo muito com as notícias do mundo. De manhã, ouço a rádio, desligo e rezo com o que ouvi. Rezo com o clamor do mundo. Posso estar zangada, mas também com admiração. Há coisas bonitas a acontecer que alguns meios de comunicação sabem como noticiar. Tento não me deixar assoberbar pelas coisas más e procuro as coisas bonitas. E Deus sabe que existem algumas: as pequenas coisas do dia-a-dia, os sorrisos, as pessoas que resistem e lutam, não importa o que aconteça. Essa escuta alimenta a minha oração e a minha qualidade de presença com as pessoas ou grupos que encontro durante o dia. Muitas vezes, antes de iniciar uma sessão, dirijo-me a Jesus interiormente, dizendo-lhe: “Estou disposta a passar por aquela porta, mas não sem Ti!”. No fim do encontro, coloco a Seus pés o que experienciei. O seu a seu dono! Eu não sou Deus, obviamente, e Deus não sou eu!
Qual é o trabalho de Deus?
É difícil dizer (risos). Tudo o que sei é que não é o meu trabalho! Deus sabe o que Deus tem de fazer. De qualquer forma, as tarefas estão bem separadas. Qual é a diferença entre os dois? Pode haver momentos em que estou fora de mim, quando me inclino demais para o lado do Salvador – uma tentação muito pronunciada entre os católicos... Isso manifesta-se quando me estou a debater internamente, querendo que a outra pessoa esteja bem. Posso subtilmente pressionar, por exemplo, ao questionar demais. “Acho que está muito cansado. Já se perguntou por quê?”. A armadilha também pode estar em não questionar. Ouvir é muito subtil. Estou sempre no fio da navalha: estar presente demais ou não estar presente o suficiente. Nem sempre me dou conta disto imediatamente. Pode ocorrer quando revejo o meu dia, ou durante uma sessão de supervisão com outros colegas quando falamos sobre a nossa prática. É um ajuste constante porque nunca estou na posição certa. Isto precisa de ser aceite. Mas procuro estar o mais próxima possível...
Acha que existe uma forma de escuta Cristã?
É difícil dizer... Talvez a consciência de sermos três neste encontro: o meu paciente, Deus e eu; e a renúncia à omnipotência em querer salvar o outro. Nesses momentos de escuta, um é tudo para o outro. O acompanhamento psicológico ou espiritual e a confissão podem ser terríveis lugares de controlo, de dominação... A pessoa considera-te como alguém que sabe o que é certo e bom para ela. Pedem conselhos sobre como seguir em frente nas suas vidas. Não acedo a este pedido. O meu papel é trazer à tona uma palavra inesperada, uma palavra que emerge do inconsciente. Há tantas coisas que não sabemos sobre nós mesmos que descobrimos graças ao derramamento de uma palavra pessoal. Permaneço na posição de mensageiro e testemunha entre o Senhor e eles mesmos.
Quais são os papéis dos dois?
O mensageiro é aquele que põe em oração o que foi ouvido. A testemunha é aquela que ouve e que pode recordar o que foi dito, o caminho percorrido, quando a pessoa o esquece: “Disse-me isto, lembra-se?”. O meu desejo é que a pessoa cresça na sua própria voz/forma.
Em termos de escuta, o que aprendeu com a sua experiência enquanto capelã na prisão de Fleury-Mérogis (Essonne)?
Durante doze anos ouvi pessoas que não estavam muito bem porque tinham pouca reputação: agressores sexuais. Foi-me dito que eram pessoas que não tinham aprendido nada, que eram intelectualmente e humanamente limitadas, que não se sabiam expressar, etc. Mas qual é a razão para não terem nada a dizer, não merecem também ser ouvidos? Lembro-me do momento em que um prisioneiro se levantou a meio de uma homilia sobre perdão e pecado e nos desafiou: “Estou farto das vossas histórias de perdão! ISignifica que fazemos algo errado, confessamos e depois fazemos novamente?”. O padre e eu entreolhamo-nos: não podíamos deixar passar essa pergunta, formulada com tanta liberdade. Tiramos algum tempo para responder. Fico tão emocionada quando a humanidade aparece de forma tão vívida.
Essas experiências mudaram a sua relação com Deus?
Conheci alguns grandes predadores. Perguntei a mim mesma o que poderia esperar deles... Então percebi que não sentia nenhum desespero, descobri uma presença muito segura de Deus. Este Deus é o Cristo do Sábado Santo, o da descida ao inferno. Por mais profunda que seja a sepultura em que nos tenhamos afundado, atesto que Deus está lá, independentemente do que aconteça, e que Deus nos quer levantar. É esse Deus que conheci e com quem estou a avançar.
Entrevista de Gilles Donada, publicada no La Croix International a 8 de Janeiro de 2022.
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