Arquidiocese de Braga -

6 outubro 2021

Confiar na Igreja à luz de um relatório chocante sobre abusos sexuais

Fotografia La Croix International

DACS com La Croix Inernational

Entrevista exclusiva do "La Croix" com um importante teólogo jesuíta em França, onde um relatório devastador sobre o abuso sexual por padres católicos e outros funcionários da Igreja abalou a nação.

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Um relatório recém-lançado sobre o abuso sexual de menores por padres católicos e outros funcionários da Igreja em França mostra que a insistência da pedocriminalidade entre o clero desde 1950 é muito pior do que o que se acreditava anteriormente.

A Comissão Independente do Abuso Sexual na Igreja (CIASE) divulgou o seu tão aguardado relatório em Paris e, entre as suas descobertas mais horríveis, revelou que o clero francês abusou de mais de 200.000 crianças nos últimos 70 anos.

O chamado Relatório Sauvé (em homenagem ao presidente da comissão) já está a causar choque em França e na Igreja Católica global. Será especialmente doloroso para os católicos franceses, alguns dos quais questionarão se ainda podem confiar nos seus líderes da Igreja ou permanecer membros da sua comunidade de fé.

Étienne Grieu, um padre jesuíta e teólogo que é reitor da universidade dirigida pela sua Ordem em Paris (Centre Sèvres), falou com Gilles Donada, do La Croix, na véspera do lançamento do novo relatório.

 

A extensão do abuso sexual, como se espera que apareça no Relatório Sauvé, perturba os católicos. O que gostaria de lhes dizer?

Estas notícias estão a causar muitas emoções nas nossas comunidades. Acredito que devemos aceitar todas essas emoções: rebelião, raiva, tristeza, nojo, desolação. E o mais importante é aceitá-las todas juntas, mesmo que sejamos tentados isolar-nos para chorar. Devemos partilhar estas emoções que nos percorrem, ouvir o que estas revelações provocam em nós, na nossa relação com os sacerdotes, com a Igreja, etc. Aproveitar este tempo é indispensável antes de começarmos a procurar respostas.

 

É fácil encarar essa realidade?

Claro que não! A tentação é endurecermos dizendo, por exemplo: “Estou farto, a Igreja está sempre sob ataque”, “A Igreja não é pior do que outras instituições, olhem para o mundo do desporto ou a educação nacional”, “Vamos parar com a autoflagelação!”. Sim, é um choque, mas temos que olhar a realidade de frente, sem nos virarmos, e ver que esta é a nossa realidade! Se não a enfrentarmos, não vamos conseguir seguir em frente.

 

O que é que este fenómeno revela sobre o funcionamento da Igreja?

Várias coisas. Primeiro, existe o aspecto sistémico desse mal. Não adiantámos salvaguardas para proteger os fiéis. Quando tomamos conhecimento desses actos criminosos, não apenas não tomamos os meios adequados para detê-los, mas muitas vezes protegemos os agressores e recusamo-nos a ouvir as vítimas. Em segundo lugar, questiona o modo como a informação circula na Igreja. Como é que não ousamos dizer em voz alta o que presenciamos em segredo? E como é que não demos crédito a quem teve a coragem de nos alertar? Havia uma espécie de omertà (código de silêncio). Aqueles que falam a verdade são muito preciosos. A Igreja precisa deles, mesmo que as suas palavras nos perturbem!

 

Este escândalo afecta a imagem que temos do sacerdote...

Isso é óbvio. Na Igreja, os laços de confiança são extremamente importantes. E agora a nossa confiança nos ministros ordenados (diáconos, padres, bispos) foi abalada. Isso leva-nos a termos que permanecer vigilantes.

 

Vigilantes sobre o quê?

Em não idealizá-los. Às vezes, tendemos a colocá-los num pedestal. Os abusadores costumam ter uma personalidade forte, que se impõe e que não ousamos contradizer. Eles são o foco das atenções. O abuso ocorre quando a relação é exclusiva, na maioria das vezes porque o próprio padre dispensa os outros e se coloca como a única referência. Não é saudável dependeres de uma pessoa, deve ser accionado um alerta vermelho. É essencial contar com outros homens e mulheres cristãos: sacerdotes, diáconos, leigos, pessoas consagradas, etc.

 

Que atitude devemos adoptar?

É bom lembrar que o padre não é intocável. Como todos os seres humanos, ele é falível; ele também tem os seus defeitos, as suas feridas, as suas vulnerabilidades. Um ministro ordenado é antes de tudo um irmão. Uma certa teologia do ministério tende a esquecer isso.

 

Que tipo de teologia?

Aquela que apresenta o sacerdote como “outro Cristo” (alter Christus). Esta noção foi destacada no século XVII pela escola francesa de espiritualidade [Pierre de Bérulle, São Vicente de Paulo, Jean-Jacques Olier, São João Eudes, São Luís Maria Grignion de Montfort, Bossuet] e em consonância com o Concílio de Trento (1545-1563). Mas isso pode levar a uma teologia com falhas quando o padre é removido da condição comum. Para os Padres da Igreja, cada cristão é uma figura de Cristo. O sacerdote é antes de tudo um irmão, embora seja também um sinal da presença e do chamamento de Cristo. Devemos questionar-nos sobre a nossa cultura eclesial. Mas a cultura raramente é questionada porque estamos imersos nela.

 

No Credo, o crente afirma a sua fé numa “Igreja santa, católica e apostólica”. Não acha que a santidade da Igreja também está a ser questionada?

Santa não significa perfeita. Quando dizemos que a Igreja é santa, significa que está voltada para Deus. É normal que os católicos se perguntem se a Igreja não está completamente gangrenada com esse mal. Infelizmente, quando olhamos para a história da Igreja, esta não é a primeira vez que ela foi atormentada por abominações: basta pensar no massacre de milhares de mulheres acusadas de bruxaria ou dos índios americanos, a Inquisição, as Cruzadas, etc.

 

Mas para onde devemos dirigir o nosso foco?

Para os Evangelhos, que nos lembram que não há nada perfeito na Igreja. No Evangelho de Marcos, em particular, descobrimos discípulos que estão longe de serem super-heróis: arrastam os pés, estão errados... Jesus confia a sua Igreja a um homem, Pedro, que o traiu e negou publicamente! Como nos lembra São Paulo, “carregamos este tesouro como em vasos de barro” (2Cor 4,7). O essencial é que o grande corpo que é a Igreja permaneça voltado para Deus, em plena solidariedade com a angústia da humanidade, para levá-la até Ele. É aí que reside a sua santidade.

 

Além do choque das revelações, que caminho se abre para nós?

Quando passamos por crises, quando os nossos alicerces são abalados, percebemos, muitas vezes depois, que o Espírito Santo não abandona a sua Igreja. Somos chamados à conversão, a uma renovação profunda. No meio deste cataclismo, acreditamos que algo novo pode surgir.

Entrevista de Gilles Donada, publicada no La Croix International a 5 de Outubro de 2021.