Arquidiocese de Braga -

13 abril 2021

D. Luiz Lisboa: "a Igreja é a voz dos que não têm voz"

Fotografia DACS

DACS

D. Luiz Fernando Lisboa viveu em Moçambique durante vinte anos, oito dos quais como bispo da Diocese de Pemba, na região de Cabo Delgado. Depois de várias ameaças, foi transferido para o Brasil.

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D. Luiz, quem é que o estava a ameaçar? Os extremistas?

Não. O governo. Primeiro recebi ameaças de expulsão, depois de apreensão de documentos e, no fim, de morte.

 

Como tem a certeza que foi o governo?

Maputo negou a guerra desde o início. Quando o conflito e o perigo se tornaram evidentes, proibiram que se falasse sobre o assunto. Impediram que os jornalistas fizessem o seu trabalho. Um repórter está desaparecido desde Abril do ano passado. Trabalhava para uma rádio comunitária e falava sobre a guerra. Na sua última mensagem, disse que tinha sido cercado pela polícia. A Igreja era a única que falava sobre a situação e isso não agradava ao governo. Acima de tudo, o governo não tolerava que saíssem notícias sobre o Estado. Orgulho nacional, negócios. Quando há um ano a Conferência Episcopal condenou através de um documento o que estava a acontecer, as autoridades reagiram mal, e começaram a tecer acusações sobre mim.

 

Porque é que Maputo está a minimizar a presença do extremismo?

Eles não querem que se fale mal do país. Apelámos ao governo para que pedisse ajuda à comunidade internacional. Sozinho, o governo não pode fazer frente ao extremismo, como estamos a ver. O nosso apelo chegou ao Parlamento Europeu e duas comissões pediram-me para expor a situação.

 

O que é que o Papa lhe disse?

Depois da visita a Moçambique, o Papa Francisco acompanhou sempre a situação de Cabo Delgado. Em Agosto do ano passado ligou-me para dizer que estava connosco, que rezava por nós e que queria dar-nos a sua bênção. Graças à sua intervenção, a guerra internacionalizou-se. Depois das suas palavras, muitas pessoas começaram interessar-se pela guerra. Em Dezembro, o Papa doou 100 mil euros para a construção de hospitais e para ajudar os deslocados.

 

Os extremistas usam o nome do estado islâmico. Mas esta não é uma guerra religiosa. Se fosse, ter-nos-iam atacado. Mas eles atacam toda a gente, destroem tanto igrejas, como mesquitas. Matam líderes cristãos e muçulmanos. Esta é uma guerra económica pela apropriação dos recursos naturais: gás líquido, ouro, rubis, pedras semipreciosas. De momento, existem mais de 700 mil pessoas deslocadas e mais de 2 mil mortos.

 

Conversou com o Papa novamente depois das ameaças de morte?

No dia 18 de Dezembro encontrei-o no Vaticano. Ele queria saber como estava a situação. Evidentemente tinha mais informações do que eu: sabia que eu corria riscos e ofereceu-me uma transferência para o Brasil.

 

O que está a acontecer em Cabo Delgado?

Recursos, multinacionais e guerras. Três coisas que encontramos sempre juntas. A situação está a piorar rapidamente. Estou em contacto com muitas pessoas da diocese de Pemba e Palma. Muitas pessoas ainda estão escondidas no mato. Outras conseguiram chegar a outra cidade, Nangade. Há muitos idosos, crianças e pessoas que não sabem como sobreviver. Disseram-me que os helicópteros contratados lançaram bombas que atingiram terroristas, mas também civis.

 

O D. Luiz viveu muitos anos em Moçambique. De onde vem essa violência extremista?

Moçambique é um dos dez países mais pobres do mundo. E a região Norte é a mais pobre. No ano passado presenciei uma inversão da política pública, que não se preocupou mais com a população, com a sua saúde e educação. Há muita gente pobre, sem trabalho, doente e analfabeta. Os jovens não têm futuro porque não podem estudar: não há escola secundária. É uma província pobre e abandonada, embora rica. Ou seja, há uma situação ideal para a guerra: pobreza, muitos recursos e questões étnicas. Todos os elementos importantes para um conflito.

 

© DACS

 

O que é que o D. Luiz fez?

Há vários anos, alertámos o governo local e central que havia grupos que desrespeitavam os líderes muçulmanos, mas o governo não prestou a devida atenção aos nossos avisos. Esses indivíduos cresceram e tornaram-se cada vez mais fortes. Até à revolta de 2017. Se eles são ou não patrocinados pelo ISIS, isso permanece um mistério. Há analistas que afirmam que a reivindicação do califado é falsa. 

 

Qual é a sua opinião?

Os extremistas usam o nome do estado islâmico. Mas esta não é uma guerra religiosa. Se fosse, ter-nos-iam atacado. Mas eles atacam toda a gente, destroem tanto igrejas, como mesquitas. Matam líderes cristãos e muçulmanos. Esta é uma guerra económica pela apropriação dos recursos naturais: gás líquido, ouro, rubis, pedras semipreciosas. De momento, existem mais de 700 mil pessoas deslocadas e mais de 2 mil mortos.

 

O mais bonito foi ver aquela gente tão pobre acolher outros pobres nas suas casas. Eles acolhiam duas ou três famílias, não tendo quase nada, nem espaço, nem comida. Nunca vou esquecer isso. São um exemplo de partilha humana.

 

Como vive a população? Há quem diga que não opuseram resistência ao ataque.

Há uma total falta de respeito pelos direitos humanos da população. Tanto por parte dos terroristas, como do governo. A população tem medo de ambos. Os extremistas roubaram uniformes do exército, armas, alimentos e apresentam-se como militares. Para o povo, é uma situação terrível. Eles vêem o exército e pensam que são terroristas. As forças militares de alguma forma abusam das pessoas. Mas os soldados também são vítimas, porque estão numa guerra em que não querem estar.

 

Descobriram recentemente um campo de gás líquido. Muitos dólares foram investidos em Cabo Delgado. O é que isso comporta?

A relação das multinacionais com a região não é boa. A maneira como essas grandes empresas actuam não é boa. Existem leis orientadoras sobre os passos a realizar, como consultas à população e participação destas pessoas no debate, mas eles não seguem essas normas. E a população tem que deixar as suas terras. Isso cria descontentamento.

 

Nunca teve medo?

Não. Nunca deixei de falar. A Igreja é a voz dos que não têm voz. Como é que eu poderia ficar calado?

 

Sente a falta de Moçambique?

Por mim, teria lá ficado. Sinto muita falta. Todos os dias peço informações e falo com amigos e missionários. E, mesmo daqui, procuro sempre entender como é que posso ajudar aquele país. Pedi a todos os missionários e missionárias da região que deixassem Palma imediatamente.

 

O que traz no coração desses 20 anos que lá passou?

O mais bonito foi ver aquela gente tão pobre acolher outros pobres nas suas casas. Eles acolhiam duas ou três famílias, não tendo quase nada, nem espaço, nem comida. Nunca vou esquecer isso. São um exemplo de partilha humana.

 

Entrevista original de Raffaella Scuderi, publicada pelo La Repubblica e traduzida por Luisa Rabolini para o Instituto Humanitas Unisinos
Adaptação do DACS.