Arquidiocese de Braga -
30 março 2021
(Pelo menos) 535 sem-abrigo morreram em França em 2020
DACS com La Croix
“Collectif Les Morts de la rue” faz a reconstituição das histórias de quem já não vive para as contar. Jornal "La Croix" publicou hoje o nome dos 535 falecidos.
São 535 os mortos de 2020: 491 homens, 44 mulheres, uma criança com menos de 5 anos e quatro jovens com menos de 19 anos, bem como uma pessoa com mais de 80 anos. Cada uma destas pessoas viveu principalmente em locais não apropriados para a habitação, em centros de emergência ou de acomodação temporária. Morreram na via pública, em abrigos improvisados como um parque de estacionamento, uma escada, um barracão de construção ou no metro, mas também houve quem morresse num local prestador de cuidados, ou mesmo numa estrutura de acolhimento. E o La Croix ainda avisa: os números deste ano podem estar incompletos devido às dificuldades levantadas pela pandemia de Covid-19, que não deixa os voluntários do “Collectif Les Morts de la Rue” (CMDR) fazerem o seu trabalho como habitualmente.
Sara, com 24 anos, é uma das voluntárias da organização. Já há seis meses que trabalha com o CMDR. O ano de 2020 impediu-a de terminar a tese que estava a desenvolver no âmbito de um mestrado em Estudos Europeus e Internacionais sobre a memória da “sua” Espanha depois do franquismo. Sem dar o ano por perdido, juntou-se ao Colectivo, onde também trata a memória dos mortos.
Desempenhar um serviço cívico numa associação onde é sempre (ou quase sempre) o anúncio da morte que marca o dia foi uma escolha bem pensada para a jovem. Lá, nas quatro salas do rés-do-chão de um edifício pobre do norte de Paris, o anúncio da morte não marca um fim, mas antes um início: o de uma história, de um encontro, de uma “investigação”. Muitas vezes começa com um telefonema, uma mensagem de voz ou um e-mail que diz: “Um sem-abrigo morreu esta manhã, em tal ou tal lugar”.
“Mikaël de grande coração” morreu na rua a 24 de Novembro de 2020, com 34 anos. Percorria toda a cidade de Paris para tomar banho todos os dias e varria com uma vassoura a frente da sua tenda. Um dia, visitou o cabeleireiro do bairro onde morava, para pedir um corte de cabelo grátis. O cabeleireiro aceitou. “É a primeira vez que recebo tanto cuidado”, disse Mikaël ao cabeleireiro. Quando anunciaram a morte do jovem ao cabeleireiro, o homem desfaleceu.
Desde Setembro, sem se deixar assolar pelo hábito ou pela indiferença, Sara assinala as causas da morte num questionário: morte na rua, por frio, por overdose, por cancro, por uma luta ou por um incêndio. Sem excepção, aquelas mulheres e aqueles homens, com uma média de 49 anos, sucumbem a circunstâncias tristes. Sara trabalha ainda noutra associação que atende e trabalha com sem-abrigo.
No “Collectif Les Morts de la rue” ainda não é possível dizer se a Covid-19 terá causado mais mortes do que num ano “normal”, mas, seja qual for o contexto, é possível rastrear a história de pessoas isoladas que pareciam excluídas do mundo, espaço e tempo.
Esta é a missão de Sara há seis meses: começar pelo fim. É também o dos mais de 150 voluntários da associação, que realizam inquéritos telefónicos diários e acompanham os funerais de pessoas isoladas ou em situação de rua. Sara partilha com outras duas jovens a missão de publicar homenagens e realizar investigações locais. Juntos, graças ao testemunho de moradores locais, eles reconstituem as histórias.
O CMDR nasceu em 2002. Vinte anos depois, conta com cerca de 150 voluntários e 45 associações nacionais e parceiros locais.
Brice era um homem culto, apaixonado por livros, que mantinha longas conversas com os transeuntes na rua. Era “uma estrela, era o Michael Jackson das ruas", diz Sara. Era regularmente convidado para almoçar com as freiras da vizinhança. “Brice de Nice”, como o chamavam, “tinha vivido uma vida inteira nas ruas e era fabuloso”, diz Sara. Às vezes vinha de Itália, às vezes de Kabylia…
As duas grandes acções deste colectivo são a iniciativa “Parentes em luto” e o inquérito "Enumerar e descrever”, financiado pela Direcção-Geral da Coesão Social e por donativos de particulares.
O objectivo é refazer a trajectória dos moradores de rua que morreram durante o ano. A pesquisa é baseada em 109 perguntas precisas e sistemáticas feitas por voluntários e respondidas confidencialmente por associações, prefeituras, assistentes sociais, médicos, etc.
Os dados recolhidos permitem “fazer falar” uma precariedade ainda pouco quantificada a nível nacional. Desde 2015, o CMDR assinou um acordo renovável de três anos com o Estado para acolher voluntários em serviço cívico que são compensados em até 580€ líquidos por mês, à taxa de 24 horas por semana, por uma missão de seis meses que se soma a todas as que a organização já tem.
Esta nova missão consiste em escrever textos de homenagem aos sem-abrigo que morreram em Paris, a partir de inquéritos realizados junto dos residentes. Dezenas de histórias foram publicadas no blogue do CMDR, em nome das centenas de sem-abrigo que morrem a cada ano e cujas histórias não serão contadas.
Hoje, dia 30 de Março, o CMDR prestou homenagem a todas estas pessoas. O jornal La Croix, seguindo-lhe o exemplo, publicou os seus nomes e parte das suas histórias em texto, imagem e vídeo.
Texto escrito a partir do artigo publicado no La Croix, a 30 de Março de 2021.
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