Arquidiocese de Braga -

17 março 2021

Nova Ágora: tempos são de incerteza, mas sociedade mobilizou-se para não deixar ninguém para trás

Fotografia Bermix Studio

DACS

A segunda sessão da Nova Ágora decorreu na passada sexta-feira, 12 de Março, subordinada ao tema “Medicina e Saúde, à luz da pandemia”. Fernando Regateiro, médico e professor universitário, Pedro Morgado, psiquiatra e professor universitário, e Miguel Oli

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Fernando Regateiro: “temos de aprender a conviver com a incerteza”

Fernando Regateiro começou por elogiar o debate de ideias, até porque, por vezes, só ao dialogar com outras pessoas é que se consegue perceber uma perspectiva errada, sendo que a suficiência e o conhecimento de todos são muito limitados. De seguida, ilustrou um pouco daquilo que foi vivido pelas unidades hospitalares durante as fases agudas da pandemia.

“Tivemos um tempo de gestão hospitalar de incerteza inimaginável. Tínhamos que inventar normas porque elas simplesmente não existiam. Tínhamos que criar circuitos e organizações que não existiam. Tínhamos que lutar contra falhas, falências e ausências de fornecimentos. Mas também tivemos, por outro lado, um sentimento de solidariedade que me levou a dizer há dias que a sociedade civil cuidou, durante aquele tempo, daqueles que anos e anos cuidam dela”, explicou.

O responsável apontou ainda algumas hipóteses para o surgimento de uma pandemia por vírus emergentes, como a rápida e intensa circulação de pessoas infectadas e agentes infectantes, proporcionada pelo transporte aéreo internacional, mas também pela pressão demográfica resultante do aumento das áreas agrícolas e da concentração industrial e dos serviços.

“Dantes vivíamos iludidos com as certezas de que o amanhã só poderia ser melhor do que hoje. No entanto, instalou-se, com rudeza, a incerteza com a qual teremos de aprender ou reaprender a viver. Vai ser assim em tudo, também na saúde e nas instituições de saúde.”

Fernando Regateiro

 

“Assistimos também à criação de habitats humanos saturados de pessoas, enquanto os investimentos na manutenção da saúde e na prevenção e controlo das doenças ainda são modestos”, sublinhou.

Fernando Regateiro alertou ainda para as profundas alterações climáticas e dos equilíbrios ecológicos por intervenção e ganância humanas e para o contacto próximo das pessoas com animais e importação destes para fora dos seus habitats naturais, em condições que permitem que os vírus passem a barreira de espécie e atinjam o Homem.

O responsável forneceu ainda indicações de que podem servir de preparação para uma pandemia, com o intuito de ajudar a família e a comunidade. As pessoas devem fazer uma lista de contactos de emergência, identificar organizações locais de apoio para informação, suporte ou cuidados de saúde. Fernando Regateiro disse ainda ser importante criar condições para poder trabalhar a partir de casa em alturas como estas, bem como proceder ao planeamento de actividades de ensino/aprendizagem para o caso de a escola fechar.

Sobre o aumento do número de casos de infetados por Covid-19, o médico pediu atenção à fadiga pandémica, que leva a uma redução da percepção do risco.

© Expresso

“Já nos habituamos a ver o risco como inevitável. Os excessos comunicacionais tornaram a pandemia num caso único, num conviva normal presente a toda a hora, até à hora de jantar. Este é um mecanismo de sobrevivência, de fuga à pressão de um risco continuado. Temos é de aprender a conviver com o vírus e a evitar o contágio”, explicou.

Esta recusa da adesão das pessoas ao confinamento traduz-se não apenas em perigos para a saúde pública, mas também no incumprimento e contestação dos normativos legais limitadores da liberdade. De acordo com Fernando Regateiro, a desvalorização do risco em favor de outras variáveis económico-sociais também leva a um aumento de crimes de desobediência registados pelas autoridades.

O responsável enunciou ainda os pilares da preparação de uma resposta hospitalar à pandemia, como o planeamento, antecipação, prontidão, competência e resiliência, entre outros, e alertou para o facto de a população vir a entrar num novo “tempo comum” após a pandemia.

“Dantes vivíamos iludidos com as certezas de que o amanhã só poderia ser melhor do que hoje. No entanto, instalou-se, com rudeza, a incerteza com a qual teremos de aprender ou reaprender a viver. Vai ser assim em tudo, também na saúde e nas instituições de saúde. E o homem, como ser aprendente que é, terá de exercitar e concretizar as aprendizagens decorrentes desta pandemia”, concluiu.

Pedro Morgado: “Rejeito a ideia de que esta seja uma situação de nova normalidade, mas temos de repensar a vida que tínhamos antes da pandemia

Pedro Morgado, médico psiquiatra, começou por reflectir sobre aquilo que aconteceu à população no que diz respeito às respostas cognitivas e emocionais nas diferentes fases da pandemia.

“Fomos surpreendidos há cerca de um ano com notícias que nos anunciavam algo muito difícil e assustador. E reagimos como reagimos sempre quando nos sentimos ameaçados. Reagimos ao medo juntando-nos àqueles que nos são mais próximos, àquela que é a nossa família nuclear. Ficámos muito preocupados, ficámos até um pouco egoístas. Isso também é natural e fisiológico num primeiro momento: proteger-nos e protegermos aqueles que nos são mais próximos”, explicou.

O médico psiquiatra adiantou que essa foi uma fase em que as populações experienciaram ansiedade, alguns problemas de sono, alguns tiveram até sintomas mais depressivos.

“De seguida foi proposto o confinamento para proteger os mais vulneráveis, o que representou uma mudança brutal no estilo de vida das populações, trazendo mais sofrimento para a maioria das pessoas. O confinamento trouxe também uma consequência muito clara: extinguiu muitas das nossas perspectivas de futuro: o futuro tornou-se muito incerto. O confinamento é uma espécie de nevoeiro: é uma gaiola sem chave. É um tempo e um espaço que habitávamos sem sabermos como e quando sairíamos dele. Isso, de facto, foi muito assustador e colocou a nossa saúde mental em risco”, alertou.

© Universidade do Minho

Pedro Morgado afirmou que toda a sociedade, sem excepção, experienciou sintomas relacionados com a saúde mental, muitos deles totalmente novos para algumas pessoas. Contudo, o médico psiquiatra disse que ninguém foi tão afectado como os mais vulneráveis.

“Os que já estavam mais vulneráveis à chegada da pandemia são aqueles que estiveram mais vulneráveis durante a pandemia e são também aqueles que vão sair mais vulneráveis dela. Preocupam-me em particular as pessoas que vivem na pobreza, os sem-abrigo, as pessoas que são portadoras de uma deoença psiquiátrica, as pessoas que perderam o seu trabalho e o seu rendimento económico e que vivem aflitas e angustiadas porque não sabem como hão-de obter o rendimento necessário para comer. As pessoas que sofrem de dependências e que foram ainda mais abandonadas e marginalizadas, as minorias, as vítimas e pessoas em risco de violência doméstica, as pessoas de idade avançada e que vivem em isolamento… isto preocupa-me muito”, confessou.

No entanto, Pedro Morgado recusa uma visão fatalista, apresentando “mensagens de esperança” e frisando que a maioria da população se adaptou à situação que continua a considerar de excepção.

“Rejeito a ideia de que esta seja uma situação de nova normalidade. Nós não vamos mudar de vida, vamos regressar a muito daquilo que tínhamos, mas houve uma adaptação a estas dificuldades. A maioria teve recursos e condições para se adaptar e reorganizar. Foi aí que presenciamos uma série de respostas colectivas muito importantes, como o SNS, o desenvolvimento de um número extraordinário de respostas de apoio… Houve uma sociedade mobilizada para não deixar ninguém para trás!”, apontou.

Em tempos de incerteza, o responsável considera importante recuperar a definição de saúde mental, que teoricamente se traduz “num estado de satisfação em que o indivíduo se realiza em todo o seu potencial”.

“Do ponto de vista teórico estamos todos de acordo que é algo bastante inatingível, é algo que nós procuramos, que promovemos, mas que é difícil de atingir. Há definições mais simples, como o bem estar físico e psicológico, a capacidade de lidar com os desafios normais da vida… Termos ficado ansiosos e depois termo-nos adaptado é sinal de saúde mental. Saúde mental é aceitarmos os sofrimentos da vida, é ficarmos tristes quando perdemos alguém para esta pandemia e fazemos dessa tristeza o fermento que nos vai preparar para a vida que vem a seguir”, explicou.

“A pandemia é uma oportunidade para nos repensarmos. Estamos muito insatisfeitos com a nossa vida hoje em dia, mas temos que olhar para trás, para antes da pandemia, e pensar em como era a nossa vida. Não era muitas vezes uma rede de relações absolutamente superficiais, onde hipotecávamos a subjectividade e nos rendíamos ao número objectivo de likes que uma experiência nos proporcionava, como ir «àquele» restaurante, ou à aquisição de algo novo e o que poderia significar em termos de representação social de nós próprios?”

Pedro Morgado

 

Pedro Morgado considera que também é sinónimo de saúde mental a capacidade de cada um contribuir para a comunidade, seja através do trabalho ou das relações familiares, ou mesmo através da intervenção nas comunidades sociais e religiosas.

O médico psiquiatra afirmou ainda que tem de haver três tipos de respostas a esta afectação da saúde mental. O primeiro passa pela prevenção da doença e promoção da saúde, através de melhores qualidades de vida, de trabalho, de relações, de um estilo de vida saudável, promoção da espiritualidade, exercício físico, entre outros aspectos. O segundo nível é o do diagnóstico atempado e precoce de situações a nível de doença psiquiátrica.

“O primeiro trabalho tem de ser ao nível da educação, tem de existir maior literacia em saúde mental e temos de desestigmatizar a doença mental. Não podemos continuar a políticos e outros agentes sociais a insultarem-se uns aos outros com a doença! As pessoas não são a sua doença, vivem com a sua doença”, alertou.

Pedro explicou que o terceiro nível diz respeito à intervenção que deve seguir os princípios da Medicina, sejam os princípios científicos, sejam os princípios bioéticos. E salientou a participação da sociedade civil, já que “os serviços de saúde mental são o parente pobre da saúde”. O médico considera que os cuidados já são humanizados, embora deficientes, sendo necessário que a sociedade alerte e denuncie situações menos boas. O médico psiquiatra deixou ainda uma reflexão sobre o “regresso à normalidade” de que tanto se ouve falar.

“A pandemia é uma oportunidade para nos repensarmos. Estamos muito insatisfeitos com a nossa vida hoje em dia, mas temos que olhar para trás, para antes da pandemia, e pensar em como era a nossa vida. Não era muitas vezes uma rede de relações absolutamente superficiais, onde hipotecávamos a subjectividade e nos rendíamos ao número objectivo de likes que uma experiência nos proporcionava, como ir «àquele» restaurante, ou à aquisição de algo novo e o que poderia significar em termos de representação social de nós próprios?”, questionou.


Miguel Oliveira: quebra de natalidade acentuou-se

Miguel Oliveira começou por elogiar a encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, afirmando que todos os cristãos e não cristãos a deveriam ler, reler, consultar e “citar nas aulas”, no caso daqueles que são docentes.

Sobre a questão das vacinas contra a Covid-19, o Obstetra-Ginecologista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, afirmou não querer ser um “especialista em ética sem bondade, vivendo a julgar os outros”, citando o Papa Francisco, mas afirmou que o processo de vacinação trouxe realmente à tona o melhor e pior do ser humano.

“A gestão ética da pandemia tem-nos mostrado o que o ser humano tem de melhor, de mais generoso, mais solidário e mais altruísta e o que tem de pior enquanto isolacionista, nacionalista, até egoísta. Grande quantidade das vacinas está concentrada em apenas alguns países, o que é um ultraje moral, como classificou António Guterres”, alertou.

O responsável voltou a citar o Papa, dizendo que neste mundo “ninguém se salva sozinho”, e elogiou as respostas que têm surgido para fazerem frente a várias crises, como os outros oradores já haviam referido. Em relação à taxa de natalidade em Portugal, Miguel Oliveira confessou sentir-se apreensivo.

© Expresso

“Hoje já temos dados insofismáveis que nos indicam que a quebra de natalidade se acentuou. Há também indicadores preocupantes em relação à sexualidade que, a um cristão como eu, inquietam. São eles o recurso a plataformas de encontro íntimo digital, com uma subida exponencial de recurso a essas plataformas, com recursos mais ou menos sofisticados de prazer mais ou menos imediato. No entanto, estes recursos não representam, a meu ver, formas de crescimento enquadradas numa relação de afecto, numa relação de amor e numa relação de intimidade mais digna do ser humano”, explicou.

Em relação às grávidas, o Obstetra-Ginecologista considera que “os cuidados de saúde falharam um pouco”, tendo em conta que a teleconsulta acabou por despersonalizar muito a intimidade de uma relação presencial médico-doente.

“Há coisas que não se podem fazer por telefone, não se pode ouvir o coração de um bebé pelo telefone, não se pode pôr as mãos no abdómen de uma grávida para ver se o bebé mexe ou não.
E assistimos a outra coisa preocupante, a uma tendência que já vinha de longe, talvez por a consulta não permitir a presença do pai nas consultas e nas ecografias pré-natais, o que teve uma grande repercussão emocional nas grávidas. Assistimos a uma enorme transferência de grávidas do SNS para hospitais privados”, adiantou.

Miguel Oliveira diz que é urgente repensar a prestação dos cuidados de saúde de “forma extremamente humana e presente”, disponibilidade essa que pode passar precisamente por equacionar a delegação de competências.

“Acho que é extremamente importante um apoio claro a duas áreas em que vemos os pobres dos mais pobres serem autênticas vítimas: falo do acesso dos imigrantes às consultas pré-natais e de planeamento familiar, já para não falar do drama do aborto provocado. O planeamento familiar falha aqui de uma forma chocante e brutal. Podemos mesmo dizer que os mais pobres são descartados no acesso a cuidados de saúde elementares”, concluiu.

O terceiro e último encontro deste ano acontece no dia 19 de Março e debate o “Precariado: Novas explorações laborais”.

Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Paulo Marques, economista e professor universitário, e Paulo Granjo, professor universitário, lançam novas luzes sobre o tema. Graça Francisco, jornalista, modera a conversa. Pode acompanhar a Nova Ágora nas páginas de Facebook e YouTube da Arquidiocese, sem necessitar de inscrição.



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