Arquidiocese de Braga -
11 março 2021
Nova Ágora: "Este confinamento é um ensaio geral para aquilo que aí vem com as alterações climáticas"
DACS
Bagão Félix, Domingos Xavier Viegas e Orfeu Bertolami mostraram-se preocupados com "velocidade alucinante" dos problemas de ordem ecológica e afirmam que travar a espiral de destruição depende de cada um de nós.
A primeira sessão do ciclo de conferências "Nova Ágora" decorreu na sexta-feira, dia 5 de Março, via Zoom e com transmissão no Facebook e YouTube da Arquidiocese de Braga. A "Agonia do planeta: exigência de uma conversão ecológica" foi o tema que dominou as intervenções de Bagão Félix, Domingos Xavier Viegas e Orfeu Bertolami, oradores neste primeiro encontro.
Depois de devidamente enquadrada a "Nova Ágora", o Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, lembrou ser um dos objectivos destas conferências deixar inquietações à sociedade e aos Arquidiocesanos.
"Não queremos discussões inócuas e muito menos recados enviados seja a quem for. A cidade somos todos nós e a cada um é solicitada uma responsabilidade insubstituível", sublinhou.
O prelado fez de seguida a contextualização do primeiro tema, relacionado com a ecologia, recordando que o termo é recente, tendo aparecido pelas primeira vez em 1866, por iniciativa de Ernest Haeckel.
"Com um prefixo, eco, que procede de oikos, o mesmo que deu origem a economia e que tem um significado de lar, casa, acrescentando-lhe o sufixo logos pela referência a raciocínio, pensamento, ciência propriamente dita. Por isso, quer dizer a ciência da casa (já agora, economia é o governo da casa)", explicou.
D. Jorge Ortiga recordou ainda marcos históricos nesta área, como a segunda encíclica do Papa Francisco, a Laudato Si’, ou o Pacto Ecológico Europeu, elaborado pelo Parlamento Europeu.
"A causa da Terra é prioritária. Seremos capazes de passar dos bons propósitos a compromissos concretos? Da parte da Igreja, o Papa fala de uma ecologia integral a redescobrir e a interpretar. Sugere uma conversão pessoal para chegar a hábitos concretos na vida de cada um, através de uma ecologia da vida quotidiana. Que esta sessão deixe ficar muitas inquietações, a serem cumpridas tanto por cada um de nós como pelas autoridades, de quem dependem opções corajosas para acelerarmos a conversão ecológica", indicou.
Bagão Félix: "A conversão tem de começar por nós!"
Bagão Félix, economista e professor universitário, afirmou que o título escolhido para o encontro, nomeadamente a expressão "agonia do planeta", era uma "bofetada".
"Foi uma boa forma de dizer que este é um encontro de pessoas que se querem desinstaladas e querem ter a capacidade de comunicar esse desassossego e inquietude que está nas palavras «agonia do planeta». E, por outro lado, temos também a conversão ecológica, não apenas numa perspectiva religiosa, mas humanista, de necessidade de transformação numa perspectiva espiritual e ética", explicou.
O economista sublinhou que, nesta área, não é possível haver mudanças se estas não começarem pelas próprias pessoas e que o princípio da subsidariedade deve falar mais alto.
"Nada se consegue se esta conversão não começar dentro de nós. Nas nossas famílias, empregos, academias, sociedades… Aqui acho que se aplica com rigor um dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja: o princípio da subsidariedade. Esta questão da ecologia tem de ser resolvida de baixo para cima, no sentido de aprofundar a consciência e a responsabilidade individual de cada um", apelou.
Bagão Félix foi peremptório ao afirmar que as leis do mercado têm prevalecido sobre as leis da natureza, dizendo que, se o PIB português tivesse em consideração acontecimentos como a desflorestação, seria certamente menor.
"Pensemos nisto como uma casa, uma família. A família tem o rendimento da mulher e do homem que trabalham. O seu PIB, segundo a lógica tradicional do PIB constabilístico, é o conjunto de rendimentos e de activos, reais ou financeiros, que no fim do ano têm. Mas, entretanto, vamos supor que essa família tinha dois automóveis que ficaram destruídos durante o ano. Então isso não se subtrai à riqueza desta casa?", ilustrou.
O orador afirmou que cada vez mais é necessária uma perspectiva ética ecocêntrica ou biocêntrica, constrastando com a habitual antropocêntrica, e que o valor da natureza não pode ser meramente instrumental.
"O que temos é uma ética para o futuro que já não é para o futuro, mas é para hoje. Os problemas ecológicos relacionados com o planeta sempre existiram, mas agora desenrolam-se a uma velocidade alucinante", alertou.
"Nada se consegue se esta conversão não começar dentro de nós. Nas nossas famílias, empregos, academias, sociedades… Aqui acho que se aplica com rigor um dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja: o princípio da subsidariedade."
Bagão Félix
Bagão Félix elogiou ainda o papel da Igreja no cuidado da "casa comum", dando exemplos como a Nova Ágora ou os escritos do Papa Francisco, Bento XVI ou Paulo VI, mas deixou também um aviso.
"Temos uma perspectiva bastante presentista, bastante «deixa andar», que é pouco adequada a um dos princípios da doutrina social da Igreja, que é a destinação universal dos bens. Os bens até podem ser privados, mas sobre eles reside uma hipoteca social que tem uma utilidade que está para além de qualquer proprietário. Do ponto de vista da ética não utilitarista deve colocar-se essa questão. Não estamos a criar um mundo para os nosso filhos e netos que nos permita assegurar a vida no planeta", concluiu.
Orfeu Bertolami: "Este confinamento é um ensaio geral para aquilo que aí vem com as alterações climáticas"
Orfeu Bertolami, "físico teórico", como se apresentou, afirmou que iria começar a sua intervenção com algumas provocações, até por não gostar do termo "agonia do planeta".
"O planeta Terra continuará, por isso é que não gosto de falar assim. Nós estamos é a destruir as condições de habitabilidade dos seres vivos no planeta. Temos a tendênca de tratar as outras espécies como pequenas máquinas, como se elas existissem para nos servir. Em certa medida, um dos problemas que estamos a viver é o sucesso extraordinário da nossa espécie às expensas de uma transformação se calhar demasiado radical das condições que transformaram o nosso planeta nos últimos anos", alertou.
Bertolami explicou de seguida que, como é natural, o clima da terra tem vindo a alterar-se e a temperatura varia, sendo que todas as vezes que a temperatura aumenta, também há um aumento de gases de efeito de estufa, muito particularmente de dióxido de carbono.
"O aumento da concentração desses gases faz com que a temperatura média do planeta aumente. Temos que pensar que a existência de dióxido de carbono é fundamental para a nossa existência, de outra forma o planeta seria muito mais frio", explicou.
O físico referiu que desde há décadas que as actividades humanas suplantam as actividades naturais no planeta e que, se olharmos para actividades biológicas e geológicas, iremos ver que os humanos já movem mais volume do que as actividades naturais.
"Esse é o sucesso da nossa espécie: controlamos o ambiente de forma tão extraordinária que por um lado somos capazes de ter uma enorme riqueza material e científica, artística, cultural, etc., mas por outro lado estamos a causar uma perturbação muito profunda no sistema terrestre", alertou.
Orfeu Bertolami referiu que um dos efeitos desse desequilíbrio são as alterações climáticas, sublinhando que a variação de poucos graus de temperatura pode ter efeitos dramáticos.
"Dois, dois graus e meio podem significar a destruição da Floresta Amazónica. Se a temperatura média do planeta aumentar mais do que três graus centígrados, é certo que esse ecossistema desaparece. E quando um ecossistema destes desaparece, afecta todos os ecossistemas na sua vizinhança", explicou, dizendo que as estimativas indicam que há cerca de 20% de probabilidade de ao final do século XXI o planeta ter um aumento de temperatura na ordem dos 3ºC ou 4ºC.
"Não sei se as pessoas se dão conta da enormidade dessa situação. Se apanhássemos um avião para irmos de férias para um sítio paradisíaco e houvesse 20% probabilidade de morrermos no caminho, acho que as pessoas pensariam que não valeria a pena a viagem. Saímos de casa com segurança porque a probabilidade de sermos atropelados é de 1 em 10 milhões. Usamos os aviões porque a probabildiade de termos um acidente é a mesma. 20% é muito!", elucidou.
O professor universitário agarrou ainda o repto deixado por Bagão Félix, dizendo que a economia de mercado como existe hoje não permitir a resolução deste tipo de problemas.
"Os produtos de hoje são fruto de trabalho e matérias primas extraídas do meio ambiente. Temos produtos que no seu preço nunca incluem a destruição do meio ambiente causada para o produzir. Tenho dois produtos exactamente iguais e um é produzido com meios que depois compensam o meio ambiente da destruição causada. Este tende a ter um preço muito maior do que aquele que destrói simplesmente o meio ambiente e não incorporou no seu preço essa destruição. Resultado: o primeiro produto é sempre mais atraente e vai sempre ser o mais consumido. Portanto, temos aqui um mecanismo perverso, completamente típico da situação que vivemos, em que os ecossistemas que já referi só têm algum valor económico depois de serem destruídos!", alertou.
Questionado sobre a possibilidade de a pandemia de Covid-19 se dever a alterações climáticas ou perturbações do sistema terrestre, Orfeu Bertolami não poupou nas palavras e deixou um aviso muito claro.
"A destruição de ecossistemas coloca-nos em contacto com patogénicos que estavam isolados e essa é possívelmente uma causa desta e de outras pandemias… E de futuras pandemias! O que estamos a viver actualmente, esta situação de confinamento, é um ensaio geral para aquilo que vai acontecer no futuro relativamente às alterações climáticas. Vamos ter períodos de calor intenso, de frio intenso, vamos ter disrupção da cadeia produtiva de várias ordens... Se não fizermos nada de forma concertada e eficiente, estes momentos de confinamento vão ser a nossa vida no futuro. Isto é um ensaio para aquilo que vamos ter com as alterações climáticas", concluiu.
Xavier Viegas: "Não há desculpas para ficarmos indiferentes a todos os alertas. Não há desculpas!"
Xavier Viegas, professor universitário, também começou por se referir ao título da sessão, dizendo que a "agonia do planeta" é um processo onde o Homem teve e tem intervenção, onde o papel individual e colectivo dos seres humanos pode fazer a diferença.
"O termo agonia evoca a morte e é a isso a que estamos a assistir no nosso planeta, uma morte porventura lenta e para alguns imperceptível, mas que pode ser acelerada de um modo súbito. É o que acontece com alguns dos processos naturais que conhecemos, como é o exemplo de uma bola de neve que começa por ser pequena e ao fim de pouco tempo pode atingir proporções que a tornam descontrolada", indicou, dizendo que na sua área de investigação sobre os incêndios florestais, pequenos focos muitas vezes se tornam "incontroláveis e mortíferos" em poucos minutos.
O professor explicou aos colegas e assistência que, tendo completado 70 anos de idade há pouco tempo, foi formado numa altura em que se previa que todas estas alterações só afectassem o planeta daí a milhares de anos.
"Formei-me em Engenharia Mecânica, em Lisboa, no final da década de 60 e lembro-me que em algumas disciplinas, como as de Física, ao estudarmos Termodinâmica e quando se tratava do equilíbrio térmico, um sistema como a atmosfera ou os oceanos eram aquilo a que chamávamos um reservatório, ou seja, um sistema de tal maneira grande que permanecia imutável, não sendo afectado pelas trocas de energia ou de massa como qualquer sistema finito que considerássemos, mesmo que fosse uma grande indústria. Nessa altura pensávamos que podíamos lançar substâncias, poluentes, calor na Terra, até dizíamos que podiam ser infinitos, que podiam recuperar as suas propriedades originais. Temos que reconhecer que várias gerações de técnicos e cientistas foram formados como eu nesta mesma mentalidade, não apenas em Portugal, mas em todo o mundo. E isto não foi assim há tanto tempo, foi há cinquenta anos. Também temos de reconhecer que muita coisa mudou entretanto, sobretudo na perceção do problema, na sua caracterização e vontade de o enfrentar", explicou.
Xavier Viegas elogiou o recente testemunho de David Attenborough, que "tanto fez para divulgar a riqueza e a variedade da vida na Terra" e que lançou há pouco tempo o livro “A vida no nosso Planeta”, onde dá conta da degradação do planeta a que assistiu durante toda a sua vida.
"Não há desculpas para ficarmos indiferentes a todos os alertas. Não há desculpas! Sabemos e devemos acreditar que nem tudo está perdido e que é possível não apenas desacelerar, mas também travar ou mesmo reverter esta espiral de crescimento dos efeitos destruidores. Tal pode ser conseguido com a acção concertada de entidades poderosas e com grande capacidade de decisão como uma ONU, uma Comissão Europeia e outros painéis internacionais, mas requer a adesão e a participação de cada um de nós, que até podemos ter pouco poder, mas somos decisivos nesta luta para salvar o planeta", frisou.
O responsável afirmou que a natureza dá a todos os seres lições de equilíbrio e sustentabilidade, sendo necessária mais atenção para conhecer e contemplar a natureza.
"Jesus Cristo dizia-nos: «olhai os lírios do campo». Mas nós vivemos uma vida demasiado citadina, onde a realidade da vida natural nos é dada, muitas vezes, pelo ecrã de uma televisão ou de um telemóvel. Se olhássemos as flores, aprenderíamos a amar mais a Criação que Deus confiou à nossa guarda. Tenho esperança no futuro: temos assistido a coisas negativas, mas também a muitas positivas", concluiu.
A segunda sessão da Nova Ágora decorre na próxima sexta-feira, 12 de Março, subordinada ao tema “Medicina e Saúde, à luz da Pandemia”. Sobem ao palco Fernando Regateiro, Pedro Morgado e Miguel Oliveira, médicos e professores universitários. A moderação está a cargo de Helena Machado, presidente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.
A conferência será transmitida no Facebook e YouTube da Arquidiocese de Braga, não sendo necessária nenhuma inscrição.
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