Arquidiocese de Braga -

7 janeiro 2021

"Fundamentalismo Evangélico e Integralismo Católico: um ecumenismo surpreendente" (I)

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DACS com La Civiltà Catollica

À luz dos recentes acontecimentos que envolvem os Estados Unidos da América, revisitamos um artigo escrito pelo Pe. António Spadaro, Sj e pelo Pastor Presbiteriano Marcelo Figueroa*, em Julho de 2017. Apesar de já terem decorrido mais de três anos, as li

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“Em Deus confiamos (In God We Trust). Esta frase está impressa nas notas bancárias dos Estados Unidos da América (EUA) e é o lema nacional actual. Apareceu pela primeira vez numa moeda em 1864, mas não se tornou oficial até que o Congresso aprovasse uma moção em 1956. Um lema é importante para uma nação cuja fundação estava enraizada em motivações religiosas. Para muitos, é uma simples declaração de fé. Para outros, é a síntese de uma fusão problemática entre religião e estado, fé e política, valores religiosos e economia”, assim começa o artigo.

Religião, maniqueísmo político e um culto ao apocalipse

Como nos dizem Spadaro e Figueroa, a religião teve um papel mais incisivo nos processos eleitorais e nas decisões governamentais nas últimas décadas, especialmente em alguns governos dos Estados Unidos. “Ela oferece um papel moral para identificar o que é bom e o que é mau”.

No entanto, essa mistura de política, moral e religião assumiu, por vezes, uma linguagem maniqueísta que divide a realidade entre o Bem absoluto e o Mal absoluto. Na verdade, essa polarização começou a acontecer depois de o presidente George W. Bush ter falado em desafiar o eixo do mal e declarar que era dever dos EUA libertar o mundo do mal após os eventos de 11 de Setembro de 2001. Hoje, vemos o presidente Trump dirigir essa “luta” contra uma entidade colectiva mais ampla e genérica, formada pelos “maus” ou mesmo pelos “muito maus”. 

“Às vezes, os tons usados pelos seus apoiantes em algumas campanhas assumem significados que poderíamos definir como «épicos»”, realçam os autores do artigo.

Spadaro e Figueroa explicam que essas posturas se baseiam em princípios fundamentalistas cristão-evangélicos que datam do início do século XX e que se foram radicalizando. Passaram de uma rejeição de tudo o que é mundano – como era o caso da política, assim considerada – para terem uma forte e determinada influência religiosa-moral nos processos democráticos e nos seus resultados.

 

O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa professada pelo profeta persa Mani, também conhecido como Manes ou Maniqueu (216-276). Consiste numa concepção do mundo fundamentada numa dualidade básica entre opostos inconciliáveis: luz e trevas; bem e mal.

 

O termo “fundamentalista evangélico” hoje pode ser associado à “direita evangélica” ou ao “teoconservadorismo” e tem as suas origens nos anos 1910-1915. Naquele período, um milionário da Califórnia do Sul, Lyman Stewart, publicou a obra “The Fundamentals”. Lyman queria responder à ameaça das ideias modernistas da época e resumiu o pensamento de autores cujo apoio doutrinal apreciava. Exemplificou os aspectos morais, sociais, colectivos e individuais da fé evangélica. Os seus admiradores incluem muitos políticos e até dois presidentes recentes: Ronald Reagan e George W. Bush.

“Os grupos sócio-religiosos inspirados por autores como Stewart consideram os Estados Unidos uma nação abençoada por Deus. E eles não hesitam em basear o crescimento económico do país através de uma adesão literal à Bíblia. Nos últimos anos, essa corrente de pensamento foi alimentada pela estigmatização de inimigos que muitas vezes são «demonizados»”, explicam Spadaro e Figueroa.

O panorama de ameaças à compreensão destes grupos sobre o modo de vida americano inclui os chamados espíritos modernistas, o movimento dos direitos civis dos negros, o movimento hippie, o comunismo, os movimentos feministas e, mais recentemente, os migrantes e os muçulmanos. 

“Para manter os níveis de conflito, as suas exegeses bíblicas evoluíram para uma leitura descontextualizada dos textos do Antigo Testamento sobre a conquista e defesa da «terra prometida», ao invés de serem guiadas pelo olhar incisivo, cheio de amor, de Jesus nos Evangelhos”, alertam.

“A fórmula destes grupos é profética: lutar contra as ameaças aos valores cristãos americanos e prepararem-se para a justiça iminente de um Armagedão, um confronto final entre o Bem e o Mal, entre Deus e Satanás. Nesse sentido, todo o processo (seja de paz, diálogo, etc.) desaba diante das necessidades do fim, da batalha final contra o inimigo. E a comunidade de crentes (fé) torna-se uma comunidade de combatentes (luta).”

Spadaro e Figueroa apontam que, dentro dessa narrativa, tudo o que leva ao conflito não ultrapassa os limites, pelo contrário: muitas vezes a própria guerra é assimilada às conquistas heróicas do “Senhor dos Exércitos” de Golias e David. 

“Nessa visão maniqueísta, a beligerância pode adquirir uma justificativa teológica e há mesmo pastores que lhe procuram um fundamento bíblico, utilizando os textos bíblicos fora do contexto”, alertam.

Ora, nessa visão teológica, até a ecologia ganha uma nova dimensão: os desastres naturais, as dramáticas mudanças climáticas e a crise ecológica global são vistos como sinais que confirmam a esses grupos o seu entendimento não alegórico das figuras finais do Livro do Apocalipse e a sua esperança apocalíptica num novo céu e uma nova terra”.

“A fórmula destes grupos é profética: lutar contra as ameaças aos valores cristãos americanos e prepararem-se para a justiça iminente de um Armagedão, um confronto final entre o Bem e o Mal, entre Deus e Satanás. Nesse sentido, todo o processo (seja de paz, diálogo, etc.) desaba diante das necessidades do fim, da batalha final contra o inimigo. E a comunidade de crentes (fé) torna-se uma comunidade de combatentes (luta). Essa leitura unidireccional dos textos bíblicos pode anestesiar as consciências ou apoiar activamente os retratos mais atrozes e dramáticos de um mundo que se encontra a viver além das fronteiras da sua própria «terra prometida»”, explicam.

*O Pe. Antonio Spadaro, Sj é Editor no La Civiltà Cattolica
*Marcelo Figueroa é um Pastor Presbiteriano, Editor Chefe da edição argentina do L’Osservatore Romano
** O texto encontra-se publicado aqui na íntegra.

 

 

Chaves de Leitura

1. A religião tem vindo a ter um papel cada vez mais preponderante nos processos eleitorais e nas decisões governamentais nas últimas décadas, especialmente em alguns governos dos Estados Unidos.

2. A mistura entre política, moral e religião assumiu, por vezes, uma linguagem polarizadora, que divide a realidade entre “Bem absoluto” e “Mal absoluto”.

3. Essas posturas baseiam-se em princípios fundamentalistas cristão-evangélicos que se foram radicalizando até ao ponto de tentarem influenciar os processos democráticos e os seus resultados.

4. Autores como Lyman Stewart inspiram grupos sócio-religiosos que vêem os EUA como uma nação abençoada por Deus. Os “inimigos” da nação são frequentemente “demonizados”. Entre o rol de ameaças à nação figuram o movimento dos direitos civis dos negros, o movimento hippie, o comunismo, os movimentos feministas e, mais recentemente, os migrantes e os muçulmanos.

5. Estas correntes utilizam leituras e análises descontextualizadas do Antigo Testamento para justificar a conquista e defesa da “terra prometida”.

6. Nessa narrativa, o conflito não é proibido, podendo ser justificado teológica e biblicamente.

7. A fórmula destes grupos é profética: têm de se preparar para um Apocalipse e defender a todo o custo os valores cristãos americanos. Crentes passam a combatentes.