Arquidiocese de Braga -

5 março 2025

Sílvia Monteiro: “espiritualidade e relação” para a aplicação do Sínodo

Fotografia Rede Sinodal

Rede Sinodal

Este é o episódio 5 da iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal

A médica considera que “se não cuidarmos desta profundidade espiritual e relacional, corremos o risco de que a sinodalidade possa ser apenas um conjunto de processos meramente burocráticos e organizativos”. É o episódio 5 da iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal.

A iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal continua a produzir conteúdos sinodais e nesta fase de receção do Documento Final do Sínodo apresenta aqui o episódio 5 desta produção. A convidada desta vez é a médica Sílvia Monteiro.

Após três anos de um caminho sinodal que envolveu milhões de pessoas e de duas sessões do Sínodo dos bispos em Roma que leitura faz do Documento Final do Sínodo?

Estamos perante um documento muito importante. Toca-me o consenso alargado que foi possível depois de escutar tantas vozes de tantas latitudes e, portanto, penso que é um documento que exprime bem aquela que é a vontade do povo de Deus, seguramente inspirado pelo Espírito Santo.

Do documento, eu gostaria de salientar duas dimensões que me tocaram especialmente. Uma delas, a necessidade de renovação espiritual e a outra, a conversão relacional. Porventura, não seriam dois temas que estávamos à espera, sobretudo este cuidado com as relações, que estivesse ali explícito. Mas, de facto, na minha perspetiva, estas duas dimensões - espiritualidade e relação -, porventura podem ser a chave do sucesso da implementação deste documento sinodal. De facto, é absolutamente fundamental. E, note, se não cuidarmos desta profundidade espiritual e relacional, corremos o risco de que a sinodalidade possa ser apenas um conjunto de processos meramente burocráticos e organizativos. E, portanto, penso que é essencial que cada comunidade procure encontrar espaço para este crescimento espiritual de todos os seus membros. Obviamente, é um trabalho que é contínuo, que exige formação, exige acompanhamento espiritual, mas exige sobretudo, como nos diz o documento, uma conversão do coração.

E aqui podemos olhar para a nova Encíclica do Papa, que nos interpela a olhar para a centralidade do coração. De facto, aquele lugar onde se revela o nosso verdadeiro ser E, portanto, na minha perspetiva, este tempo de implementação da sinodalidade é o tempo de, sobretudo cada um de nós, olhar para dentro, para o mais profundo do seu ser, para procurar quais são as suas sedes, para reconhecer onde é que as pode, no fundo, colmatar. Nesta certeza que é Jesus que vem ao nosso encontro, e procura-nos na nossa fragilidade, onde estamos, como somos. E, portanto, o grande segredo da sinodalidade, na minha perspetiva, é precisamente esvaziarmo-nos de nós. E esse tem que ser o primeiro passo. Temos que nos esvaziar das nossas certezas, dos nossos preconceitos, para podermos abrir o nosso coração às surpresas e maravilhas de Deus, e aí estarmos abertos à opinião do outro e fazermos este caminho em conjunto.

Depois, o outro conceito de que falei, e que emerge neste documento, é esta necessidade de cuidarmos das relações na Igreja. E de facto faz sentido numa Igreja que se apresenta tantas vezes de uma forma distante, fria, formal, é muito importante cuidarmos das relações, desde logo da nossa relação com Deus, mas também das relações dentro dos próprios elementos da Igreja e, naturalmente, fazendo pontes para o mundo. Como fazer isso? Bom, nós temos um grande líder, Jesus Cristo, que nos mostra exatamente qual é que é o rosto divino do nosso Deus. Um Deus Amor, que é proximidade, é ternura, é compaixão. E, portanto, isso deve ser o nosso exemplo, e ao lermos o Evangelho, encontramos, de facto, em quase todas as passagens, os gestos concretos que Jesus faz, no sentido de aprofundar esta relação com aqueles que cruzam o seu caminho. E penso que este tem também que ser o nosso caminho, não termos medo dos gestos. E deixo aqui alguns gestos que me parecem particularmente importantes.

É importante parar para olhar, olhos nos olhos. Aqueles olhares que estabelecem relação, e que dão vida. Mas é importante percebermos também a importância e o poder transformador do toque, para voltarmos a abraçar, a beijar, a segurar na mão. Precisamos de escutar. E este é também um elemento muito importante deste documento. Escutar com o ouvido do coração, como nos fala o Papa Francisco, nesta atitude de acolhimento, de aceitarmos e respeitarmos a singularidade de cada pessoa.

Depois dois outros aspetos muito importantes que a Igreja precisa de trabalhar: é desenvolver a empatia e a compaixão. Duas “skills” muito importantes em todos os contextos humanos, mas particularmente na Igreja. Esta sensibilidade para reconhecermos e compreendermos o sentimento do outro, isto é, empatia. Mas depois, passarmos ao patamar da compaixão que exige, no fundo, um compromisso da nossa parte para a ação e para ajudarmos o outro.

O Papa tem insistido e dado o exemplo em algumas nomeações, no sentido de que seja dado um maior protagonismo às mulheres na Igreja. A partir da sua sensibilidade feminina como vê o processo sinodal que entra agora na fase de receção nas comunidades de todo o mundo?

Sinto que agora vamos entrar na fase mais complexa e mais desafiante. A fase da implementação do que ficou decidido. A implementação na prática concreta das comunidades. Eu penso que todos nós temos esta noção, que a Igreja tem um trabalho imenso em todo o mundo, faz muito bem à humanidade e, portanto, não podemos interromper este trabalho que está em curso. E, portanto, o que é exigido à Igreja é exatamente fazer este trabalho de implementação das conclusões do Sínodo, em simultâneo com todo o seu trabalho, já em curso.

Há dias ouvi uma expressão muito interessante, que é mais ou menos como “mudar as quatro rodas num carro, com o carro em andamento”. E, por outro lado, nós conhecemos bem a realidade atual da nossa Igreja portuguesa. Uma Igreja com poucos recursos, com um clero envelhecido, em número reduzido. E, portanto, eu penso que temos aqui, de facto, um desafio que é enorme. Sabemos que há algumas resistências, mas mesmo pensando nas nossas hierarquias que estão profundamente alinhadas com o Papa Francisco e com este espírito sinodal, acredito que mesmo estes líderes têm de facto dificuldades em definir qual a melhor forma de implementar.

E, portanto, penso que neste contexto, todos somos poucos, e é mesmo muito importante incluir toda a gente de boa vontade, toda a gente que tenha alguma coisa a acrescentar nesta temática, para divulgar, e para tentar implementar boas práticas de sinodalidade naquilo que são as comunidades e as suas realidades.

Eu penso que esta é, no fundo, a missão a que se propõe a Rede Sinodal. Enfim, com várias pessoas com experiência em áreas distintas, e, portanto, que tem este grande objetivo de incentivar, antes de mais, divulgar boas práticas e de alguma forma contribuir para esta implementação.

Numa perspetiva muito pessoal, parece-me que o segredo para a implementação tem que passar por uma abertura da Igreja à inclusão da diversidade. A Igreja não pode ter medo da diversidade. Não podem ser sempre as mesmas pessoas, nos mesmos lugares, a fazer as coisas da mesma forma... Que vamos esperar que alguma coisa mude. A evidência científica tem mostrado em contextos diversos, de organizações, que a diversidade - e aqui falo em termos de género, de raça, de idade, de pensamento, estado de vida. Bom, as diversas formas de diversidade estão associadas a uma melhor performance em termos de eficácia e inovação. Acredito muito que a Igreja não seria diferente.

Por outro lado, o mundo em que vivemos é hoje muito complexo. Ninguém sabe tudo sobre tudo. E, portanto, é fundamental integrar aqui vários saberes, várias competências. No fundo, para ajudar a Igreja a caminhar. E parece-me crítico que a Igreja tenha a coragem de incluir leigos com perfis específicos e diferenciados, que possam, de alguma forma, trazer aqui também um critério de exigência e qualidade à nossa Igreja. Penso que, enfim, enquanto leiga, enquanto participante em muitas atividades, penso que a Igreja precisa cada vez mais de confiar também nos leigos, e confiar na maturidade da sua fé. Penso que hoje em dia é um contexto que... Que já merecemos essa confiança.

Falou na questão feminina e, portanto, aqui na diversidade, gostaria de dar uma palavra rápida à mulher. O rosto da Igreja é feminino, não é? Ninguém tem dúvidas disso. As mulheres estão sempre em maioria, quer no que diz respeito à participação nas celebrações litúrgicas, mas também em todo o serviço na Igreja. Enfim, somos mais. E pelo facto de sermos mais, também é mais fácil - a estatística mostra isso -, encontrar mulheres de qualidade, com competências. E, portanto, parece-me que este é um caminho que é inevitável. O Papa Francisco tem dado inúmeros exemplos. Contudo, eu deixava aqui um desafio às mulheres que nos estão a ouvir. Ninguém fará o nosso caminho por nós. Portanto, o que me parece absolutamente essencial é que cada uma de nós, mulheres, faça o seu discernimento. Perceba exatamente “qual é que é a missão que Deus tem para mim”. E, a partir daí, estarmos disponíveis para assumir o nosso lugar em Igreja. Notem, o lugar que nos foi confiado por Deus, pela graça do Batismo. E, portanto, não ficarmos demasiadamente presas a papéis, que nos são conferidos por alguém. Não. O nosso lugar é-nos conferido por Deus pela graça do Batismo. E, depois, estarmos disponíveis para colocar os dons que recebemos no feminino ao serviço da Igreja. E vou apenas citar alguns que são óbvios, como a capacidade de doação, do cuidado, da ternura, da compaixão, mas também da criatividade, da inovação. Uma espiritualidade que é necessariamente diferente, uma capacidade de comunicação mais positiva, menos agressiva. E, portanto, penso que estes dons ao serviço da Igreja poderão ser uma graça, e poderão ajudar a construir esta nova forma de ser Igreja que tanto ambicionamos.

Sílvia Monteiro é médica cardiologista em Coimbra e pertence à Rede Sinodal em Portugal colaborando na iniciativa “No coração da esperança”, 
uma parceria com Diário do Minho, Voz Portucalense, Correio do Vouga, Correio de Coimbra, A Guarda, 7Margens, Rede Mundial de Oração do Papa e Folha do Domingo