Arquidiocese de Braga -

11 dezembro 2024

João Duque sublinha a importância do Direito Canónico na aplicação das conclusões do Sínodo

Fotografia DACS

Rede Sinodal

A Rede Sinodal em Portugal apresenta o segundo episódio da iniciativa “No coração da esperança”. Uma parceria com os seguintes meios de comunicação: Diário do Minho, Voz Portucalense, Correio do Vouga, Correio de Coimbra, A Guarda, 7Margens, Rede Mundial de Oração do Papa, Folha do Domingo.

Desta vez, o entrevistado é o pró-reitor da Universidade Católica Portuguesa e professor de Teologia, João Duque. Leia aqui e veja na plataforma YouTube de Rede Sinodal em Portugal.

Nesta fase da receção do Documento Final do Sínodo, como será a aplicação prática na vida das dioceses, paróquias, instituições e movimentos da Igreja?

Neste documento há alguns aspetos que eu penso que inevitavelmente vão ter algumas alterações e que são aqueles aspetos que mexem sempre mais com estruturas, que na prática acaba por passar sempre um pouco pelo Direito Canónico.

O Direito Canónico pode ser um peso para a comunidade, enquanto é simplesmente um conjunto de normas, mas o Direito Canónico pode ser libertador na medida em que institui estruturas que são exigidas às comunidades, que são exigidas aos líderes das comunidades e que ficam instituídas mesmo juridicamente. Depois cumprem-se mais ou menos, de acordo com o que se cumpre mais ou menos do direito, pois já há lá muita coisa que não é cumprida, muitas vezes. Seja como for, as estruturas ficam constituídas.

Por exemplo, está-se a trabalhar nas estruturas paroquiais, que é sempre o nível de base. Estruturas paroquiais e estruturas diocesanas são sempre as mais significativas, sem dúvida, para a vida da Igreja Católica, pelo menos na forma como a temos organizada agora. Portanto, se houver transformações, diríamos obrigatórias, institucionalizadas na vida das paróquias, podem os líderes depois ligar mais ou ligar menos a esses órgãos, o certo é que têm que os ter, em princípio, e têm que os ouvir também. Em princípio. Muitos já os têm, felizmente. Em Portugal, menos um bocadinho. Noutros países há mais. Noutros, nalguns, ainda há menos do que em Portugal, diríamos.

Alguns párocos já têm o hábito de trabalhar, sem dúvida, muito com os paroquianos e, portanto, de escutar muitos fiéis. Não só escutar: trabalhar em conjunto, que é diferente de escutar apenas. Isso já existe, mas não existe em todos os casos. E, como nós sabemos, precisamente os casos mais delicados, que são aqueles que depois podem resultar em abuso de poder, em abuso de poder espiritual, que é um aspeto que certamente teremos que ter muito em atenção para além de outro tipo de abusos, são precisamente aqueles casos mais graves em que, diríamos, as coisas ficam entregues à boa vontade ou má vontade do líder. E isso não. Tem que haver de facto uma estrutura.

Se aí houver alterações significativas que, para além dos conselhos económicos, os conselhos pastorais, paroquiais, etc., sejam estruturas exigidas e estruturas a que o clero, que ainda são os líderes principais das comunidades e mesmo a formação do futuro clero, leve muito em conta e se habitue a trabalhar assim, haverá logo um impacto muito rápido e imediato nas comunidades, como eu digo.

Depois pode haver também, que é uma questão também estrutural, uma alteração significativa que pode levar a outras alterações, que é as decisões mais fortes, diríamos sobretudo disciplinares. Pensemos no caso da obrigatoriedade do celibato. Essa era uma alteração que, a acontecer, seria uma alteração muito significativa. Muito semelhante ou até mais significativa do que foi a alteração da liturgia no pós-Vaticano II. Sem dúvida.

E é uma decisão que me parece difícil de tomar para a Igreja latina total ou global, ou seja, em todos os continentes, ao mesmo tempo. Já houve várias tentativas de trabalhar o tema e ele nunca avançou, porque nunca se consegue consenso mínimo a nível global. Mas pode-se conseguir consenso a nível local, nomeadamente a nível dos continentes. Uma coisa é o continente africano, outra coisa é o continente latino-americano, outra coisa é o continente europeu, nomeadamente quanto a esta questão muito concreta em que cada continente tem a sua base cultural e os seus problemas diferentes.

Se houver autonomia para uma região, um conjunto de conferências episcopais, como o caso da CELAM na América Latina, poder tomar decisões a esse nível e não ficar tudo necessariamente dependente de Roma e da central, porque aí as decisões encravam e encravam porque é demasiado vasto e só isso. Não é propriamente má vontade do sistema romano, é porque é demasiado vasto. Eu penso que aí sim, poderá haver alterações muito significativas e muitas práticas, não só litúrgicas, mas práticas quotidianas, disciplinares, que possam vir a assumir configurações diferentes consoante as regiões e, depois, também consoante as práticas nessas regiões, as outras regiões eventualmente possam vir também a transformar-se. Não me admira nada que, por exemplo, na África, a obrigatoriedade do celibato fosse abolida primeiro porque tem bases culturais muito significativas relativamente a essa questão. E que a Europa, por exemplo, fosse a última. Não sei se a Europa cabe toda dentro de uma mesma região ou se há uma Europa do Leste, ou se há uma Europa do Ocidente. Nós não podemos impor mundividências, mesmo eclesiológicas, do Ocidente europeu ao Leste europeu, que têm uma história diferente. Mas o Leste europeu também não nos pode impor certas visões eclesiológicas. Portanto, podemos ter duas regiões na Europa. Os dois pulmões claramente teriam caminhos diversos.

Em que medida vai ser possível esta diversidade dentro da Igreja Católica Romana? Ou seja, não é uniforme. Ainda é bastante uniforme. Pode vir a deixar de ser uniforme assim. Pode ser um dos efeitos, a médio prazo, diríamos, destes documentos. Isto para falar só em efeitos mais pragmáticos, com consequências visíveis. O resto tem a ver com a mentalidade do próprio povo de Deus e com o seu envolvimento nas comunidades. Isso está em curso, como sabemos.

Antes não havia meios para uma consulta tão vasta, nem para fazer conhecidas as decisões, ou dar voz a realidades tão diversas. Isso é um facilitador para as coisas serem diferentes?

Indiscutivelmente. Aliás, um dos efeitos muito interessantes deste processo sinodal foi precisamente ficar claro – já suspeitávamos, mas ficou claro – que há diferenças significativas nas igrejas dentro da Igreja Católica.

O caso europeu é um caso muito típico. Penso que nos outros continentes até talvez as tensões não tenham sido eventualmente tão fortes. E daí, não sei. Não acompanhei tão de perto. O caso europeu é um caso muito claro até ao extremo de tensões, às vezes até certos dissensos, mesmo conflituosos, diríamos. Mas percebemos que, de facto, há regiões diferentes. De acordo com regiões, também há pessoas diferentes, e as pessoas diferentes existem em todas as regiões. Certamente, os cristãos de uma diocese portuguesa não vivem todos o cristianismo da mesma maneira e não vivem necessariamente de forma errada. Ou seja, são legítimas certas configurações variadas do cristianismo e até do catolicismo. Muito mais depois, na diferença das regiões. De facto, sobretudo esta questão do Leste europeu e de alguns países do Leste europeu, nas seções europeias do Sínodo, tornou-se muito evidente essa tensão.

Uma coisa é a Igreja na Alemanha, que já internamente tem diferenças, mas que, se pegarmos na Alemanha como um bloco e colocarmos em comparação com alguns países de Leste, evidentemente que são leituras do cristianismo muito diferentes, que se devem a muitos fatores, nomeadamente à história que o próprio país teve, até à história política que o próprio país teve e, depois, às contraposições que se fazem.

O Leste europeu certamente tem o fantasma do comunismo e, como tal, diríamos que todas as iniciativas que parecem tender um pouco mais para ideias de esquerda são logo qualificadas como comunistas e levantam esse fantasma. Claramente. E, portanto, diríamos, para o Leste europeu, atitudes da Igreja na América Latina são atitudes comunistas, evidentemente. Para a América Latina, atitudes dos países do Leste europeu são atitudes fascistas.

Este tipo de etiquetas são etiquetas que com facilidade se colocam. Mas é preciso perceber, de facto, os caminhos diferentes. E, se os caminhos são diferentes, nós temos que assumir essa pluralidade. Nós não temos, neste momento, estrutura que possibilite muito essa pluralidade, porque é tudo pretensamente igual. Sai tudo, em certa medida, de uma central e pretende a construção de um catolicismo absolutamente igual.

Nós estamos a ver, apenas do ponto de vista disciplinar e ritual, as tentativas de um rito da Amazónia e, no entanto, o processo, tal como está a continuar, ainda revela que ainda há uma mentalidade absolutamente central. Ou seja, a tentativa de elaborar um rito local a partir do local embate sempre com a ideia que ainda prevalece, de que Roma é que sabe como resolver a questão e, portanto, intromete-se diretamente para resolver a questão.

Roma tem que validar no final e pode sugerir correções e tudo isso. Somos uma única Igreja Católica, não vamos ficar fragmentos, não é? Isso sim. Mas Roma tem que assumir o papel que assumiu na história para trás. Não nos últimos dois séculos; antes, que era a última palavra.

Os assuntos trabalham-se localmente, através de um certo grupo, e, no final, há uma validação da parte de Roma. E, quando não há um acordo suficiente local, Roma depois tem que decidir, de facto, dar a última palavra. Mas é a última, não é a primeira.

Depois, a partir do século XIX, nós constituímos um modelo em que Roma tem a primeira e última palavra e a do meio. Ou seja, na prática, elabora uma espécie de programa mundial para a Igreja Católica que sai de lá e tem que regressar lá. Esse tipo de modelo depois não funciona.