Arquidiocese de Braga -

7 novembro 2024

Opinião

“Mas o maior de todos é o Agostinho Barbosa”

Monsenhor Mário Rui

O grande canonista vimaranense esquecido da primeira metade do século XVII

Entre as auctoritates que povoam o rico panorama da doutrina canónica pós-Concílio de Trento, destaca-se, sem dúvida, a figura do canonista vimaranense Agostinho Barbosa, jurista português de vasta erudição, natural da freguesia de Aldão, mesmo ao pé do castelo de Guimarães,  que na sua não particularmente longa existência (nasceu em 17 de setembro de 1590 em Guimarães e morreu em 19 de Novembro de 1649 em Ugento, Itália), conseguiu produzir uma quantidade realmente notável de obras, algumas das quais destinadas a um grande e duradouro sucesso, como mostram as numerosas e difundidas reimpressões e as frequentes e persistentes referências a elas em sedes científicas e pastorais até pelo menos à codificação do Código de Direito Canónico de 1917.

Se ao número dos escritos correspondessem os raios de luz, o rosto de Agostinho Barbosa brilharia tanto quanto o sol. Ele deixou publicados vinte e um volumes sobre diversas e gravíssimas matérias e doze prontos para serem publicados, que serão póstumos, somando, no total, trinta e três; sendo superiores aos outros em doutrina, o são também em número, pois não houve escritor na Igreja que escreveu tanto. Quatro séculos atrás, o Doutor Angélico nos deixou dezassete; dois séculos atrás, o Abulense [Alfonso Fernández de Madrigal, el Tostado, Bispo de Ávila] escreveu vinte e quatro; e neste século tão fértil, Suárez publicou vinte e um volumes de Teologia escolástica; Giacomo Grether escreveu dezassete contra as controvérsias dos hereges; Cornélio Alapide vinte e um sobre a Sagrada Escritura; nem agora, nem no passado, porém, houve quem escrevesse trinta e três".

Estas são palavras que o jesuíta espanhol Pe. Agustin de Castro, S.J. (Ávila 1589 – Madrid 1671), fez por ocasião das exéquias do Bispo Agostinho Barbosa, celebradas na catedral de Ugento (Itália), em 19 de novembro de 1649, exaltando com traços oratórios as virtudes e o talento do grande canonista. 

Hurter, no seu Nomenclator Litterarius, t. 3, Oeniponte 1907, tratando dos canonistas do século XVII, ao referir Agostinho Barbosa, começa com estas palavras: “Omnium tamen princeps est Augustinus Barbosa” (“mas o maior de todos é o Agostinho Barbosa”).

Estas são apenas algumas descrições do grande canonista lusitano vimaranense, que realmente era grande em seu talento e virtudes, mas concentrado num corpo bastante esguio e frágil, segundo o testemunho do então Arcebispo de Braga, Dom Sebastião de Matos Noronha, relatado no “Celebret” que lhe foi concedido em 2 de janeiro de 1639: “é de baixa estatura, cabelos e barba ruiva, com uma cicatriz no lado esquerda da testa, rosto branco e cerca de cinquenta anos” (cf. Américo do Couto Oliveira, “Agostinho Barbosa, canonista português”,10-12).

Anotações para a sua biografia 

Nunca, como no caso de Agostinho Barbosa, se pode dizer que a vida e as obras constituem uma unidade: ele dedicou grande parte de sua vida ativa ao estudo, à elaboração e à redação de textos jurídicos que não só marcaram as etapas mais significativas da sua existência, mas constituem também a principal fonte de informações ainda hoje disponíveis para a sua reconstrução biográfica. 

Agostinho respirou, desde cedo, o clima cultural da família, caracterizado por uma acentuada sensibilidade pelos estudos humanísticos e, em particular, pelos estudos jurídicos, como testemunham seu pai, Manuel Barbosa, e seu irmão, Simão Vaz Barbosa. Determinante para a sua formação foi precisamente a figura do pai, um culto advogado e funcionário régio (consultor do Rei dom Sebastião), que o direcionou, antes mesmo dos estudos jurídicos, ao estudo e aprendizagem da língua latina, da qual o adolescente Agostinho se tornou tão proficiente em tão pouco tempo que acabou redigindo, embora ainda muito jovem, um vocabulário "lusitanicolatinum", publicado em 1611.

A partir de 1608, começou a dedicar-se aos estudos jurídicos na Universidade de Coimbra, em paralelo com o caminho do sacerdócio, recebendo a ordenação presbiteral no mesmo ano em que obteve o grau de bacharel em Sacros Cânones (1615). 

Depois de se licenciar em Coimbra e ser ordenado sacerdote, publicou a sua primeira obra jurídica em 1618, que mais tarde causaria grande escândalo por ter sido colocada no Index dos livros proibidos pois a Bula "Benedictus Deus" de Pio IV (4 de dezembro de 1563) vedava os comentários integrais aos decretos do Concílio de Trento. Mas a fama de tal obra era tão grande e tão popular nos meios eclesiásticos que o rigor da censura não prevaleceu.   

Chegou a Roma no final de 1620, e ali encontrou não apenas uma situação muito favorável sob o aspeto cultural para um aprofundamento adicional de seus estudos, mas também amigos e apoiantes influentes no ambiente da corte papal; entre estes, destacou-se especialmente o cardeal vigário de Roma, Giovanni Garzia Millini, que, ciente do talento do jovem presbítero português e também de suas dificuldades económicas devido ao elevado custo de vida na Urbe para quem não contava com rendas seguras, conseguiu para ele, no último mês do pontificado do papa Paulo V, a nomeação para o cargo e o benefício anexo da Tesouraria maior da Igreja Colegiada de Santa Maria de Oliveira de Guimarães.

O seu trabalho de estudioso em Roma não passou despercebido nos altos escalões da hierarquia, tanto que em 1633, a extraordinária produtividade literária do presbítero português foi recompensada pelo próprio pontífice Urbano VIII com a concessão do título e as prerrogativas de Protonotário apostólico.

Contudo, essa “benigna propensão” pontifícia não se traduziu em uma melhoria na situação económica e, portanto, em 1640, decidiu dirigir um amplo memorial ao então rei da Espanha e Portugal, Filipe IV, no qual, citando todas as suas benemerências literárias, destacou o fato incontestável de sua situação precária. 

A restauração da monarquia portuguesa, após cerca de sessenta anos de uma união pessoal das duas coroas (1580-1640), revelou-se funesta para quem, como Barbosa, permaneceu leal à dinastia dos Habsburgo, vendo assim prejudicada a possibilidade de retornar à pátria e, consequentemente, também a de validar localmente os seus direitos de tesoureiro da Colegiada da Senhora da Oliveira.

Entretanto, o rei Filipe IV, em setembro de 1646, encarregou o Supremo Conselho da Itália de propor o canonista vimaranense, considerando os seus méritos, para uma sede episcopal vacante no Reino de Nápoles, identificada no início de 1648 na diocese de Ugento, na terra de Otranto.

Vindo de Madrid, chegou a Roma no início de 1649, sendo consagrado bispo no dia 5 de abril na Igreja de Santa Maria do Povo. Fiel ao título da sua conhecida obra de officio et potestate Episcopi, manifestou imediatamente a sua pastoralis solicitationis enviando uma carta de saudações ao "Clero et Populo Dioecesis". Contudo, não teve tempo para realizar muito de seu programa pastoral, falecendo inesperadamente, antes de completar sessenta anos, em 19 de novembro de 1649, quando havia decorrido apenas sete meses desde sua entrada em Ugento.

Integrada na prestigiosa Coleção “Atti e Documenti” do Pontifício Comitato de Ciências Históricas da Santa Sé, que tem como Presidente o Bispo português Dom Carlos Azevedo, foi publicado recentemente a obra de Massimo Bergonzini “Agostinho Barbosa. L’attività spirituale del giurista e sacerdote portoghese nella Villa e Corte de Madrid” (Agostinho Barbosa. A atividade espiritual do jurista e sacerdote português na Villa e Corte de Madrid) das edições Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 2024. 

A obra será apresentada publicamente este 7 de Novembro de 2024, às 18 horas, no Arquivo da Congregação do Oratório de Roma e constitui uma oportunidade única para resgatar do injusto esquecimento a grandeza de um vulto lusitano que durante séculos foi considerado um dos juristas mais importante do mundo e da Igreja Católica. 

 

Mons. Mário Rui de Oliveira

Chanceler do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica