Arquidiocese de Braga -

30 setembro 2022

José Tolentino de Mendonça: “O Papa olha para a Igreja e para o mundo com imaginação, o que não é pouco”

Fotografia DR

DACS com Vida Nueva Digital

Cardeal português conversou com o “Vida Nueva” depois de ser anunciada a sua nova responsabilidade como prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.

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Depois de meses de rumores, a 26 de Setembro o Vaticano anunciou que o Papa Francisco nomeava o cardeal José Tolentino de Mendonça como prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, o novo “ministério” que surgiu após a fusão dos dois departamentos da Cúria que antes se dedicavam a essas tarefas. Arquivista e bibliotecário da Santa Sé desde 2018, este cardeal português de trato delicado esteve sempre ligado ao mundo intelectual, sendo autor de uma prolífica obra poética, literária e teológica de grande sucesso no seu país.

“O primeiro e maior desafio é estabelecer uma identidade”, explica em entrevista ao Vida Nueva sobre a sua nova responsabilidade à frente do novo Dicastério para a Cultura e a Educação. Tolentino de Mendonça, de 56 anos, considera que foi um “enorme privilégio” estar à frente daquele “grande e indispensável laboratório cultural” que é a Biblioteca do Vaticano. “Um arquivista e bibliotecário é uma espécie de embaixador do Papa, não perante um país, mas perante a humanidade”. Preocupado com a necessidade de a Igreja Católica se perguntar se continua a ser hoje criadora de cultura, considera que a crise religiosa se explica por “um desafecto, um distanciamento, uma indisponibilidade para a surpresa, para se comover diante de Deus!”.

 

Qual será o maior desafio na sua nova responsabilidade como Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação?

Sendo este um novo Dicastério para a Cultura e a Educação, que a constituição apostólica Praedicate Evangelium criou ao agrupar a Congregação para a Educação Católica com o Pontifício Conselho para a Cultura, penso que o primeiro e maior desafio é estabelecer uma identidade. Uma identidade não nasce apenas da mera associação das duas instituições anteriores, mas da vontade de construir uma realidade operacional nova, coesa e inspiradora.

 

O que pediu o Papa Francisco? Como se sente com a sua nova posição?

Quem conhece o Papa Francisco sabe que ele fala com a simplicidade e os modos daquele pescador da Galileia chamado Pedro. Não faz discursos longos. Ligou-me e perguntou se eu poderia ajudá-lo no trabalho. Há sabedoria neste modo de proceder, pois descreve as várias missões como uma colaboração na missão maior, que é a da própria Igreja. Lembrei-me do que diz São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios 1, 24: “Não porque somos mestres da vossa fé, mas porque contribuímos para a vossa alegria”.

 

Quem é D. Tolentino: um cardeal poeta ou um escritor com um barrete cardinalício?

O poeta Fernando Pessoa recomendava num poema: “Sei tudo em cada coisa. / Põe quanto és no minim que fazes”. Esses versículos vieram-me à mente porque levantam uma questão muito importante na vida de todos nós: a questão da integridade. Certamente, cada um de nós carrega consigo várias habilidades e possibilidades, que devem ser geridas na unidade polifónica do seu próprio ser e não como oposições internas. As contraposições correm o risco de se tornarem artificiais. Acredito que o importante é ser o que se é, vivê-lo com simplicidade e profecia, e colocá-lo a serviço da edificação do Reino de Deus. Quando abraçamos a nossa própria integridade, tudo o que somos, tudo o que temos dentro de nós e tudo o que sonhamos naturalmente encontram o seu lugar.

 

O que significou para uma pessoa da cultura como o D. Tolentino ser responsável pela Biblioteca do Vaticano?

A biblioteca é um grande e indispensável laboratório cultural. Por exemplo, numa biblioteca patrimonial como é a do Vaticano, a tarefa de conservação é um desafio fundamental, mas não o único. Na verdade, uma biblioteca não é apenas uma colecção do passado que deve ser protegida. O desafio também é fazê-la entrar como componente da construção do presente e do futuro. Recordo que, quando o Papa Francisco nos visitou pela primeira vez, deixou-nos esta mensagem: “A dimensão da memória faz, sem dúvida, parte da estrutura da vossa missão, mas também faz da biblioteca um bom lugar para ir até ao futuro”. Em resposta à sua pergunta, digo-lhe: foi um enorme privilégio trabalhar em instituições como a Biblioteca e o Arquivo Apostólico, que nos aproximam de forma tão directa, intensa e objectiva da historicidade do cristianismo e da busca humana do conhecimento. Na ontologia desses lugares podemos identificar a máxima de Terêncio: “Nada de humano me é estranho”. Um arquivista e bibliotecário é, portanto, uma espécie de embaixador do Papa, não perante um país, mas perante a humanidade.

 

Como avalia a sua experiência na Cúria Romana até agora? Sente falta do ambiente universitário?

Confesso que vivi apaixonadamente a vida universitária, pois fui professor e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa. O ambiente universitário é muito estimulante, interdisciplinar e extremamente ligado aos desafios do futuro que, de certa forma, procura antecipar. Sinto-me em dívida com o espírito de abertura e investigação que existe numa universidade, com a importância que lá se aprende a dar às perguntas, com a experiência do trabalho em equipa. Na missão que me foi confiada na Cúria Romana, é verdade que continuo a manter uma relação com o ambiente universitário, mas a Cúria eleva novas dimensões. A constituição apostólica Praedicate Evangelium explica muito claramente como inserir a actividade da Cúria no serviço missionário de Pedro, no contexto da conversão missionária da Igreja à vida recíproca de comunhão que é a sinodalidade.

 

Como é que a literatura pode ser hoje um instrumento de evangelização?

O filósofo Charles Taylor chama a atenção para o facto de que o contrário da encarnação é a excarnação. A encarnação permite-nos contemplar o divino visível na carne, na vida quotidiana, na história. Pelo contrário, a excarnação pretende que o conhecimento de Deus se torne crível quando se distancia de uma visão corporificada. Como todos sabemos, essa foi uma grande tentação da teologia. Agora, o cristianismo é mais vital quando recupera o sentido da encarnação. A literatura é uma escola de encarnação que a teologia contemporânea ouviu. A originalidade da palavra literária está no facto de não optar por se expressar através de categorias abstractas e isentas ou fixar-se do mundo das ideias: ela veicula a riqueza, a polifonia e o drama da experiência. Precisamente Flannery O'Connor, por exemplo, opôs-se à redução do sobrenatural a um clichê piedoso. Disse: “Quanto mais um escritor deseja tornar o sobrenatural evidente, mais ele deve tornar real o mundo natural, pois se os leitores não aceitarem um mundo natural, certamente não aceitarão nenhum outro”. Na mesma linha, o poeta Paul Celan escreveu que “quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível”.

 

Os escritores de hoje são guias espirituais? Existe algum que assim o seja para si?

Qualquer trabalho artístico tem um significado espiritual. E os artistas (categoria na qual os escritores estão naturalmente incluídos), sendo cartógrafos atentos do visível, ensinam-nos a escutar o mistério, a considerar a sua potência. Num mundo secularizado, os artistas tornam-se, mesmo inconscientemente, mistagogos, professores informais ou inspirados nos caminhos interiores. Claudel, a respeito de Rimbaud, referiu-se à existência de um místico em estado selvagem. A arte testemunha essa mística e, para muitos dos nossos contemporâneos, isso constitui o primeiro anúncio. Falando de criadores do presente, reconheço essa capacidade na arquitectura de Álvaro Siza ou Peter Zumthor, na pintura de Miquel Barceló ou Anselm Kiefer, na escultura de Doris Salcedo, na videoarte de Bill Viola, na música de Arvo Pärt e Nick Cave, nos romances de Marilynne Robinson e António Lobo Antunes, na poesia de Antonio Gamoneda, Charles Simic, ou da brasileira Adélia Prado.

Entrevista de Darío Menor, publicada no Vida Nueva Digital a 30 de Setembro de 2022.