Arquidiocese de Braga -

29 setembro 2022

“Libertar os corações do ódio”. Papa Francisco encontra-se com os jesuítas da “Região Russa”

Fotografia Pe. Antonio Spadaro / La Civiltà Cattolica

DACS com La Civiltà Cattolica

Reportagem do Pe. Antonio Spadaro, Sj, Director da "La Civiltà Cattolica".

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Na Quinta-feira, 15 de Setembro de 2022, o Papa Francisco, durante a sua viagem apostólica ao Cazaquistão, encontrou 19 jesuítas que trabalham na chamada “Região Russa” da Companhia de Jesus. (…)

Depois de entrar na sala com as cadeiras dispostas em círculo, o superior da Região, o Pe. Bogusław Steczek, apresentou as actividades jesuítas na região com estas palavras:

“Santo Padre, somos os seus confrades da Região Russa da Companhia de Jesus, trabalhamos em três países: Rússia, Bielorrússia e Quirguistão. Somos trinta de 11 países. Na Bielorrússia vivemos onde a Companhia sobreviveu à sua supressão no século XVIII. Estes jesuítas deram uma grande contribuição para o renascimento da Companhia em 1814. Trabalhamos na cidade de Vitebsk, onde temos uma paróquia. O bispo consagrou recentemente uma igreja dedicada a Santo Inácio. Na Rússia estamos em Moscovo, onde temos um instituto de ensino superior com o nome de São Tomás. A edição russa da «La Civiltà Cattolica» também é publicada. O superior e director do Instituto é também secretário geral da Conferência dos Bispos Católicos da Rússia.

Estamos envolvidos no cuidado pastoral em Moscovo, mas também fora da cidade, chegando até a uma paróquia que fica a 1.500 km de distância. Também trabalhamos em Kirov, que fica a 1.000 km, em direcção aos Urais. Recentemente, dois jesuítas, um chileno e um polonês, chegaram ao seminário maior de São Petersburgo. Na Sibéria estamos em Novosibirsk, onde o bispo é Joseph Wert, nosso irmão, nomeado há 31 anos por João Paulo II como bispo de toda a Sibéria. Também temos ali um centro cultural e espiritual, que baptizamos como «Inigo». Desde 1993 que somos responsáveis por um programa especial de pré-seminário para preparar os candidatos ao seminário maior de São Petersburgo.

Estamos também em Tomsk, uma cidade universitária, onde temos uma paróquia muito dinâmica e animada e uma escola católica, a única em toda a Rússia. Também aceitamos uma paróquia em Novokuznietsk, onde trabalhamos com católicos latinos e greco-católicos.

Também trabalhamos no Quirguistão. O administrador apostólico é o Pe. Anthony Corcoran. Ele gostaria de construir uma nova catedral perto do centro da cidade, por isso trouxe aqui a primeira pedra – que pesa 30 kg – para o Papa abençoar. Na capital, Bishkek, somos responsáveis pela pastoral, mas também pela Cáritas. Em particular, ajudamos os pobres e as crianças, sem distinção de religião. Também trabalhamos no sul do país, em Djalal-Abad e em Osh, a segunda maior cidade do Quirguistão.

Penso ter enumerado todas as nossas actividades. Em suma, estamos a trabalhar nas fronteiras geográficas, culturais e religiosas. Por isso, para avançarmos com coragem, pedimos a sua bênção apostólica”.

 

O Papa, então, introduz a conversa.

 

Muito obrigado por me visitarem. Estes encontros com os jesuítas são agora um hábito durante as minhas viagens. Façam perguntas e até comentários, como quiserem. Vamos aproveitar o nosso tempo juntos!

 

Santo Padre, como está? Como se sente? Como está a sua saúde?

A saúde é boa. Tenho um problema na perna que me atrapalha, mas a minha saúde em geral está boa: a física, mas... também a mental!

 

Como você vê a situação geopolítica que estamos a viver?

Há uma guerra a acontecer e acho um erro pensar que é um filme de cowboys onde há bons e maus. E também é um erro pensar que esta é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia e pronto. Não: esta é uma guerra mundial.

 

Mas, na sua opinião, quais são as causas daquilo que estamos a viver?

Aqui a vítima deste conflito é a Ucrânia. Pretendo reflectir sobre o porquê de esta guerra não ter sido evitada. E a guerra é como um matrimónio, de certa forma. Para entender, precisamos de investigar a dinâmica que desenvolveu o conflito. Existem factores internacionais que contribuíram para causar a guerra. Já mencionei que um chefe de Estado, em Dezembro do ano passado, veio dizer-me que estava muito preocupado porque a NATO tinha batido às portas da Rússia sem entender que os russos são imperiais e temem a insegurança nas fronteiras. Ele expressou medo de que isso provocasse uma guerra, e ela estourou dois meses depois. Portanto, não se pode ser simplista no raciocínio sobre as causas do conflito. Vejo o imperialismo no conflito. E, quando se sentem ameaçados e em declínio, os imperialismos reagem pensando que a solução é fazer uma guerra para se compensar, e também vender e testar armas. Alguns dizem, por exemplo, que a Guerra Civil Espanhola foi feita para preparar a Segunda Guerra Mundial. Não sei se é realmente assim, mas pode ser. Não duvido, porém, que já estejamos a viver a Terceira Guerra Mundial. Num século vimos três: uma entre 1914 e 1918, outra entre 1939 e 1945, e agora vivemos esta

 

Desde Fevereiro que temos nos esforçado para libertar os corações do ódio. Para nós, este é um compromisso pastoral prioritário. Dizemos às pessoas que odiar alguém não é cristão. Mas a divisão é um fardo que carregamos sobre nós. Todos os dias rezamos o terço pela paz.

É isso que é preciso ser feito: libertar os corações do ódio. Desde o primeiro dia da guerra até ontem, tenho falado constantemente sobre este conflito, referindo-me ao sofrimento da Ucrânia. No dia da independência do país, havia uma bandeira na Praça São Pedro, e eu mesmo falei sobre isso, claro. Depois de falar sobre a Ucrânia, pensei em dizer uma palavra sobre o sofrimento dos dois povos, o ucraniano e o russo. Porque nas guerras é o povo que sofre, o povo. Os pobres pagam, como sempre. E isso gera ódio. Quem faz a guerra esquece a humanidade e não olha para a vida concreta das pessoas, mas coloca diante de tudo os interesses das parte se do poder. Pessoas comuns em todos os conflitos são as verdadeiras vítimas, que pagam as loucuras da guerra na sua própria pele. Também me referi àquela menina que foi assassinada. Neste ponto, tudo o que eu tinha dito até então foi esquecido e a atenção foi apenas para essa referência. Mas eu entendo a reacção das pessoas, porque elas estão a sofrer muito.

Quero lembrá-los que no dia seguinte ao início da guerra fui à Embaixada da Rússia. Foi um gesto inusitado: o Papa nunca vai à Embaixada. Ele recebe os embaixadores pessoalmente apenas quando apresentam as suas credenciais e, no fim da missão, numa visita de despedida. Disse ao embaixador que gostaria de falar com o presidente Putin desde que ele me abrisse uma pequena janela de diálogo.

Também me encontrei com o embaixador ucraniano e falei duas vezes com o presidente Zelensky ao telefone. Enviei à Ucrânia os cardeais Czerny e Krajewski, que levaram a solidariedade do Papa. O secretário para as relações com os Estados, D. Gallagher, foi fazer uma visita. A presença da Santa Sé na Ucrânia tem o valor de levar ajuda e apoio. É uma forma de expressar uma presença. Eu também tinha em mente que poderia ir. Parece-me que a vontade de Deus não é partir neste exacto momento; vamos ver mais tarde, no entanto.

Alguns enviados ucranianos vieram até mim. Entre estes estava o vice-reitor da Universidade Católica da Ucrânia, acompanhado pelo presidente conselheiro para os assuntos religiosos, um evangélico. Conversamos, discutimos. Também veio um líder militar que trata da troca de prisioneiros, sempre com o conselheiro religioso do presidente Zelensky. Desta vez, trouxeram-me uma lista de mais de 300 prisioneiros. Pediram-me para fazer algo para negociar. Liguei imediatamente para o embaixador russo para ver se algo poderia ser feito, se uma troca de prisioneiros poderia ser acelerada.

Quando um bispo católico ucraniano veio visitar-me, entreguei-lhe um conjunto com as minhas declarações sobre o assunto. Apelidei a invasão da Ucrânia de uma agressão inaceitável, repulsiva, sem sentido, bárbara, sacrílega… Leiam todas as declarações! A Sala de Imprensa recolheu-as. Mas gostaria de lhes dizer que não me importa que defendam o Papa, mas que as pessoas se sintam acarinhadas por vocês que são irmãos do Papa.

 

Santo Padre, estou convencido de que irá desempenhar um papel se e quando houver paz. E será uma forte contribuição. Somos um grupo de jesuítas de diferentes países. Que passos é que, como jesuíta, nos aconselha a dar? O que é que nos pede? O que é que podemos fazer?

Para mim, a coisa a fazer é mostrar proximidade. Esta é a palavra-chave: estar perto, ajudar as pessoas que sofrem. O povo deve sentir que o seu bispo, o seu pároco, a Igreja estão próximos. Este é o estilo de Deus, que lemos em Deuteronómio: “Com efeito, que grande nação haverá que tenha um deus tão próximo de si como está próximo de nós o SENHOR, nosso Deus, sempre que o invocamos?”. O estilo de Deus é a proximidade.

 

Como provincial da Argentina, viveu sob uma ditadura. Qual foi a sua experiência lá?

Governos ditatoriais são cruéis. Há sempre crueldade na ditadura. Na Argentina, eles pegavam nas pessoas, colocavam-nas num avião e depois atiravam-nas no mar. Quantos políticos eu conheci que foram presos e torturados! Nessas situações, perdem-se direitos, mas também a sensibilidade humana. Eu senti isso naquele momento. Muitas vezes também ouvi bons católicos dizerem: “Esses comunistas merecem! Eles estão a fazer por isso!”. É terrível quando a ideia política ultrapassa os valores religiosos. Na Argentina foram as mães que iniciaram um movimento para lutar contra a ditadura e procurar os seus filhos. São as mães que foram corajosas na Argentina.

 

Uma pergunta e um pedido: o que é que leva no coração? O que está na sua oração particular? E o pedido é para os alunos do seminário: um conselho, uma mensagem...

Começo com o segundo. O meu pedido para os seminaristas: que sejam normais, jovens normais. Um dos problemas de alguns seminários é que não recebem pessoas comuns. Estejam atento a estranhas expressões religiosas ou humanas. Digo aos seminaristas: sejam normais também na oração. Orem como um filho ao pai. É a normalidade a dizer a seriedade. O que carrego no coração e na oração?, perguntam-me. A oração, aquela que me vem espontaneamente, é sempre a invocação: “Olha o teu povo, Senhor!”. É esta a oração que me surge. É uma coisa muito simples. A intercessão está a bater no coração do Senhor. É a oração de intercessão. E não esqueçamos que a parresia é necessária na oração, clareza, coragem. O modelo é o de Abraão, quando reza: “Não te irrites meu Senhor, se…”, e depois faz o seu pedido com insistência. Devemos rezar pulsando com Deus, como dizemos em espanhol. É uma oração corajosa, face a face. Não tanto para buscar consolo, que também deve ser procurado, sim. Mas sobretudo pedir, pedir, pedir... Pensamos que a parresia é apenas uma virtude da acção, mas não, é também uma virtude da oração.

 

Se olhar para a situação da Companhia de Jesus, o que lhe dá consolo e o que lhe causa inquietação?

Recentemente, participei num encontro na Cúria Geral com irmãos jesuítas de todo o mundo. Eram cerca de quarenta. Ouvi-los realmente consolava-me. Dá-me consolo quando um jesuíta reza e confia no Senhor. Acredito que o nível da Companhia é bom nesse aspecto. Por outro lado, não me dá consolo quando vejo um jesuíta que é mais “especialista” neste ou noutro assunto do que ser um jesuíta. Há uma coisa anterior à especialização: é a pertença afectiva à Companhia.

 

Só quero acrescentar, Santo Padre, que entre as consolações deste ano, um russo foi ordenado sacerdote e temos um noviço russo, e há dois meses chegaram ao Quirguistão dois jesuítas vindos do Vietname, um professor de sociologia e um escolástico em formação. Temos um irmão jesuíta que mora lá no Quirguistão e trabalha com o administrador apostólico, o Pe. Carcoran. A do Quirguistão é uma Igreja muito pequena. Todos os católicos poderiam estar dentro desta sala! Um pai de família recomendou que eu lhe dissesse que também há católicos no Quirguistão. Para nós, o apoio da Santa Sé é muito importante e, portanto, o apoio da Nunciatura também é importante.

É verdade: a Nunciatura é a “longa manus” da Santa Sé para ajudar as Igrejas locais, especialmente as menores. Mas agora vou fazer-lhe uma pergunta: como vê o Vaticano da periferia?

 

Às vezes está tão longe que nos esquecemos! Em vez disso, sendo um grupo tão pequeno, é muito importante para nós pertencermos à Igreja universal. Assim, as pessoas também percebem que não somos uma seita muito pequena, mas parte da Igreja universal. Às vezes dói quando temos a impressão de que os representantes da Igreja estão pouco preocupados com a vida da Igreja num país pequeno. Às vezes, até os governos perguntam sobre o porquê de a Igreja dar tão pouca atenção à nossa situação.

Tem razão! Então é importante gritar nesta situação, para ser ouvido! Por favor, façam-se ouvir! A Igreja no centro está ocupada com muitas coisas diárias e pode ser tentada a esquecer ou não prestar a devida atenção. Mas se o bebé chora, chora, chora... no fim, a mãe dá-lhe o leite! A Igreja precisa que todas as vozes sejam ouvidas, que se expressem e que o façam inclusivamente... em dialecto!

 

Os nossos irmãos ortodoxos recomendaram-me dizer ao Papa que lhe são muito gratos porque está com pessoas simples e necessitadas. Colaboramos com os nossos irmãos ortodoxos no campo da deficiência. Eles pediram para dizer que são muito gratos.

Sou-lhes muito grato. Acredito que há um movimento de aproximação gradual entre católicos e ortodoxos. E eu acho isso muito importante. Devemos trabalhar juntos, orar uns pelos outros, superar as suspeitas. Ainda ontem, no Congresso de Líderes Religiosos, recebi quatro bispos ortodoxos russos. Vejo que ainda há uma preocupação com o uniatismo. Mas eu respondi que essa palavra já está esquecida. Eles têm medo (…) que o uniatismo volte. Eles têm esse fantasma. Precisam de ser tranquilizados, e isso ajuda.

 

O que sentiu quando o escolheram como Papa?

Que, ao aceitar, fiz o quarto voto de obediência.

 

A reunião chega ao fim. O superior da Região pede ao Papa que abençoe a grande pedra que será a primeira da construção da catedral no Quirguistão. Ela contém outra pedra que vem de Cafarnaum. A igreja será dedicada ao Bom Pastor. Francisco toca-lhe e a abençoa-a. De seguida, o superior apresenta alguns pequenos presentes, dizendo que são pequenos e pobres.

O Papa comenta:

Guardem a pobreza! Quando não há pobreza, então todos os males entram! A pobreza deve ser salvaguardada.

De seguida, foi-lhe entregue um álbum fotográfico das obras da Região. Depois, um anjo de palha típico da Bielorrússia e, finalmente, um cocar do Quirguistão. Depois de uma Avé Maria e da bênção, foi tirada uma fotografia com todos. Antes de partir, o Papa cumprimentou os jesuítas presentes um a um.

Reportagem do Pe. Antonio Spadaro, Sj, publicada na “La Civiltà Cattolica”.