Arquidiocese de Braga -
18 julho 2022
“A liturgia não é apenas sobre o rito”
DACS com La Croix International
Entrevista com liturgista católica sobre a carta apostólica do Papa Francisco “Desiderio desideravi”.
A beleza também é importante no acto litúrgico. Mas não deve ser confundida com esteticismo, segundo a irmã Marie-Aimée Manchon, professora do Collège des Bernardins, em Paris.
“A forma como a liturgia é conduzida ensina-nos a dignidade da pessoa diante de Deus”, disse.
A Irmã Marie-Aimée falou com Clémence Houdaille, do La Croix, sobre a liturgia e o novo documento do Papa.
A liturgia é um assunto que pode ser altamente apaixonante. O que nos diz sobre a forma como ela é percebida e a relação de cada pessoa com este assunto?
Ao ir à Missa, algumas pessoas procuram um momento amigável e relaxante com Jesus. Outras querem um momento solene, uma ruptura com o comum. As aspirações diferem e a liturgia não poderá responder perfeitamente a todas. Na sua carta apostólica Desiderio desideravi, o Papa lembra-nos que a liturgia existe para nos ajudar a entrar na grande aspiração de Deus, que é muito maior do que as nossas pequenas aspirações do momento. Não se trata apenas do rito, da adoração. Trata-se de entrar num olhar, o de Deus sobre nós, diz Romano Guardini, o maior teólogo do Movimento Litúrgico, que inspirou o Vaticano II. O grande desejo de Deus é tornar-nos seus filhos e filhas, santos, e que todos sejam salvos. Há uma dimensão filial, escatológica e missionária na liturgia que brota do mistério pascal. Não o celebramos por nós mesmos. Quando entendemos isso, não importa se não corresponde à nossa sensibilidade.
O Papa lembra-nos que a liturgia nos garante a possibilidade de um encontro com Cristo. A chave para sair da divisão não é lembrar-nos disto?
A celebração litúrgica deve permitir este encontro com Cristo nos sacramentos e nos irmãos e irmãs. Para isso, as rubricas e os rituais são necessários, diz-nos o Papa novamente. Não é uma questão de disciplina militar, mas de permitir que ela flua da fonte e que nos encontremos lá. Além disso, vimos com a nova tradução do missal que quando se muda uma fórmula, leva tempo para se encontrar o caminho… Há um bom hábito do rito que nos permite habitar as acções que fazemos. Mas esse hábito não se deve tornar uma rotina, caso contrário caímos na armadilha denunciada por Charles Péguy, a de sermos um “cristão habitual”, “impermeável à graça”. Algumas pessoas estão convencidas de que são grandes liturgistas porque conhecem a forma, apesar de não procurarem o espírito. Mas a forma deve ser apagada e devolvida à presença de Cristo, porque está oa serviço desse encontro.
Portanto, a liturgia não deve separar...
A liturgia na Igreja difere do sagrado, que existe em todas as religiões e pode permanecer muito pagão. O sagrado é importante para as pessoas, mas também pode ser um vector de separação e dominação, de poder, por meio de proibições (não tocar, etc.). Através da incarnação, passamos do sagrado ao santo. Deus deixou-se tocar, e cada baptizado é consagrado através do seu baptismo: o que se vive, é vivido pelos outros. “Já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”, diz-nos São Paulo. Na liturgia, Deus faz-nos santos – isto é, não separados dos outros, mas cada vez mais dados aos outros – e tornamo-nos, de certa forma, “irmãos e irmãs universais” segundo a bela fórmula de São Charles de Foucauld.
Entrevista de Clémence Houdaille, publicada no La croix International a 16 de Julho de 2022.
Partilhar