Arquidiocese de Braga -
31 maio 2022
Os perigos de definir o Papa Francisco como o “líder moral do mundo”
DACS com La Croix International
O programa do Papa jesuíta é radicalmente humano e intensamente relacional em demasia para ser relegado à noção muitas vezes incompreendida e mal utilizada de “moralidade”.
Existem importantes razões históricas, eclesiais e geográficas pelas quais simplesmente não há um papel para o Pontífice Romano no que está a acontecer entre esses dois países principalmente ortodoxos na Europa Oriental.
No entanto, a maioria dos católicos e alguns outros comentadores ocidentais parecem não ter compreendido essa realidade.
Apesar disso, aqueles que criticaram Francisco por não citar explicitamente a Rússia ou Vladimir Putin argumentam que – ao não identificar claramente o agressor – está a desperdiçar a “autoridade moral” da Igreja Católica e a sua própria no cenário global.
Aqueles que defendem o Papa argumentam que está na verdade a salvaguardar essa mesma autoridade ao recusar-se a “nomear e envergonhar” o Kremlin e o seu líder, preservando assim a sua liderança moral ao manter-se acima da disputa.
Talvez uma ou outra dessas visões esteja certa. Mas o perigo em ambas é que reduzem a missão do papado na arena global simplesmente à de liderança moral.
A transição do papado do poder imperial para a autoridade moral
De facto, nós, católicos, abraçamos essa ideia desde pelo menos 1870 com o colapso dos Estados Papais.
Uma vez que o papado Romano perdeu quase todo o seu poder temporal, a Santa Sé abraçou estrategicamente o seu novo papel como líder moral e, assim, conseguiu manter uma característica primordial do seu passado imperialista – o reconhecimento legal como um quase-Estado.
Isso permitiu-lhe ter relações diplomáticas plenas com actualmente cerca de 183 estados soberanos e ser membros oficiais (ou observadores) nos órgãos internacionais e intergovernamentais mais importantes do mundo.
Assim, nós, católicos, passamos a aceitar que o Bispo de Roma age puramente como uma autoridade moral quando entra nos assuntos temporais (não religiosos) do mundo.
Mas existe o perigo do mal-entendido o que isso significa, especialmente quando aplicado ao Papa Francisco, a quem muitos chamam de “líder moral do mundo”.
Em primeiro lugar, de que mundo estamos a falar? Não fiquem chocados, mas a maioria das pessoas que vivem no Planeta Terra provavelmente não têm ideia de quem é o Papa ou o que é que ele faz.
Uma visão ocidental do “mundo”
Tomemos a China como exemplo. Os líderes políticos e cristãos do país comunista sabem muito bem quem é Francisco, mas quantos dos mais de 1,4 biliões de habitantes da China – a grande maioria deles ateus ou budistas culturais – sabem ou se importam?
Um amigo italiano gosta de contar uma experiência que teve há alguns anos com um estudante de intercâmbio chinês na sua universidade que acabava de chegar a Roma para estudar relações internacionais.
Ele levou o visitante à Praça de São Pedro e, apontando para o Palácio Apostólico, disse : “É onde o Papa vive”. O jovem pareceu intrigado e perguntou inocentemente: “O Papa? Ele é o rei da Itália?”.
Depois, há quase 300 milhões de pessoas que vivem na Rússia e nas repúblicas da antiga União Soviética, compostas principalmente por cristãos ortodoxos e muçulmanos.
Quantos deles sabem alguma coisa sobre o Papa? Entre aqueles que o sabem, a maioria deles (especialmente os ortodoxos) provavelmente não tem uma visão favorável dele.
A questão é que quando nós, ocidentais, falamos sobre “o mundo inteiro”, tendemos a fazê-lo sem pensar de uma maneira eurocentrista ou ocidentalcentrista.
Por exemplo, os líderes das nações da NATO afirmam que o “mundo está unido” contra Putin e a sua invasão da Ucrânia, mas a China, o Sul Global e algumas das maiores nações do mundo – Brasil, Índia, Bangladesh e Paquistão, para citar uns poucos – recusaram-se a participar nas sanções que os Estados Unidos e os seus aliados aplicaram contra a Rússia.
Portanto, devemos ter cuidado ao chamar o Papa de líder moral do mundo.
As diversas noções do que significa “moral”
Depois, há um problema do que se pretende ao chamá-lo de líder moral.
Novamente, a resposta provavelmente depende de onde uma pessoa nasceu e cresceu e se ela ou ele foi criado numa tradição de fé, entre outros factores.
Muitas pessoas nos Estados Unidos, por exemplo, tendem a identificar a palavra “moral” com o que é comportamento certo ou lícito e muitas vezes aplicam o adjectivo de forma redutiva à conduta sexual.
Nem toda a gente faz isso, é claro, mas pode argumentar-se que a maioria das pessoas nesta nação – muitas das quais ainda têm fortes conotações puritanas – enquadram a moralidade em termos que são a preto e branco.
E a psique colectiva nos EUA, como em países de todo o mundo, muitas vezes confirma os seus próprios interesses nacionais, objectivos e modo de vida com o que é moral.
É assim que – novamente usando os Estados Unidos como exemplo – um país pode reivindicar ser religioso e temente a Deus quando uma grande parte do seu povo defende o direito de os cidadãos terem armas de assalto de estilo militar.
Há um perigo em ver o Papa – especialmente o Papa Francisco – como um líder moral mundial. Na verdade, é muito redutor.
Também torna muito fácil descartar a verdadeira “revolução” que ele tem tentado provocar durante os seus mais de nove anos como “líder da Igreja Católica Romana” – a etiqueta que a Aljazeera English colocou no ecrã para identificar Francisco porque, obviamente, nem todo o público global da rede sabe quem ele é!
O programa de ajuste de atitude
Lembrem-se do que o Papa de 85 anos disse naquela entrevista abrangente e de grande sucesso que deu apenas alguns meses após sua eleição. “A primeira reforma deve ser a atitude”, insistiu.
Foi no contexto da reforma da Igreja e o seu ponto de vista era que devia haver uma mudança de mentalidade para que quaisquer mudanças estruturais realmente se enraizassem.
Mas a ideia daquilo a que muitas vezes chamei de “programa de ajuste de atitude” do Papa também pode ser aplicada a coisas fora da Igreja, como proteger o meio ambiente, lidar efectivamente com questões de migração, criar um ambiente mais humano e economicamente justo, renunciando ao recurso à violência armada e assim por diante.
Francisco não reduz nenhuma dessas questões a meras questões morais, que muitas vezes são mantidas cativas de interesses sectários e visões partidárias que dividem o mundo - em todos os seus aspectos – em bem e mal, certo ou errado, connosco ou contra nós...
Não, o Papa argentino é impressionantemente não sectário.
As suas encíclicas e todos os seus principais escritos são um esforço para ajudar todas as pessoas, qualquer que seja a sua raça ou religião, a perceber que somos uma família humana e que a nossa diversidade deve ser valorizada e respeitada; que é possível harmonizar criativamente essa diversidade e que o mundo pode ser unido desta forma.
Chamem isto de posição moral, se quiserem, mas não confundam com uma “moralidade” estritamente baseada em regras, da qual o Papa parece desconfiar muito.
Radicalmente humano e intensamente relacional
Francisco tem-nos dito repetidamente durante todos estes anos que tudo e todos estão ligados. Ele lembra-nos continuamente que nós, humanos, somos apenas uma parte de toda a criação, rejeitando o antropocentrismo que (especialmente) o mundo ocidental colocou no centro da sua ética e até usou para defender a sua destruição do planeta.
Voltem e meditem cuidadosamente sobre o que ele escreveu na Laudato si' (“Sobre o cuidado da casa comum”), na Fratelli tutti (“Sobre fraternidade e amizade social”) e até mesmo na Evangelii gaudium (“A Alegria do Evangelho”) e verão por que chamar o Papa Francisco de líder moral do mundo não faz justiça ao que ele realmente está a fazer.
A raça humana está a enfrentar a maior reviravolta da sua história com a revolução digital, que está apenas a começar, e com avanços tecnológicos rápidos como o desenvolvimento vertiginoso da inteligência artificial.
E enquanto ele – como todos nós, meros mortais – tem as suas falhas, Francisco deu-nos alguns roteiros raros e preciosos para navegar nesta “mudança de época”, como egosta de chamar.
Estas não são directrizes morais. Em vez disso, formam um projecto radicalmente humano e intensamente relacional (trinitário) para o caminho a seguir.
Ignoramo-los, como é costume dizer-se, por nossa conta e risco.
Artigo de Robert Mickens, publicado no La Croix International a 27 de Maio de 2022.
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