Arquidiocese de Braga -

5 abril 2022

O Evangelho como uma vítima da guerra

Fotografia AFP

DACS

A manipulação, por Vladimir Putin, do Cristianismo, com a bênção de um patriarca ortodoxo, deixa um sabor amargo na boca.

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“Não em meu nome”.

Os cristãos em França sentiram um desconforto profundo quando o presidente russo Vladimir Putin citou o Evangelho e o Patriarca Ortodoxo Kirill abençoou a retórica belicista do líder do Kremlin.

Tal como exigimos que os muçulmanos condenem o fundamentalismo islâmico por matar em nome da sua fé, nós cristãos precisamos de entender o que poder dar ao conflito entre Rússia e Ucrânia a aparência de uma “guerra religiosa” cristã.

Como pode a Bíblia ser usada para justificar o injustificável?

Pensávamos que estavamos imunizados contra este perigo, que está a reaparecer de forma particularmente terrível: a fé cristã a tolerar o trabalho da morte.

É um pouco precipitado acusar apenas o tropismo nacionalista da Ortodoxia, um ramo do Cristianismo que sempre teve dificuldade de separar a espada da religião.

A História e a geografia provam que isto não é sistemático. Sem dúvida que é melhor olhar para a História recente: os actuais acontecimentos na Rússia estão enraizados em totalitarismo. Mais de 70 anos de comunismo, significa que três gerações apenas conheceram isso.

E não nos esqueçamos, é uma Igreja que tem sido martirizada como nenhuma outra Igreja no continente.

De acordo com o teólogo Jean-François Colosimo, 600 bispos, 40 mil padres e 120 mil monges e freiras morreram entre 1917 e 1941. Foram massacrados em condições atrozes. Isto sem mencionar a segunda onda de perseguição, que aconteceu sob Nikita Khrushchev.

Uma memória quebrada, uma transmissão que não ocorreu, crentes ao longo de várias gerações não conheceram liberdade de pensamento, secularização com a primazia do indivíduo e, muito menos, democracia…

Ainda pior com o comunismo, um totalitarismo que assumiu uma dimensão religiosa num sentido  amplo, uma forma extrema de messianismo: a ditadura de partido único que puxou até ao limite a lógica de uma instituição que se identificaria com a sociedade ao eliminar tudo o que se desvia da norma.

Basta olhar para a iconografia de “Putin religioso” – de pé, devoto, em frente do altar, ou mergulhando na fria água do baptismo – e comparar com as imagens políticas nos tempos altos do Estalinismo.

Não é a mais pequena ironia da História que o Cristianismo, reduzido a uma simples ideologia, tenha substituído, quase palavra por palavra, a crença comum comunista. A fé foi depois instrumentalizada e tornou-se política, permitindo desenhar uma confrontação entre mal e bem.

A causa do país é a causa de Deus, vestida em poder absoluto e omnipotência divina, de acordo com mecanismos que nos lembram que nenhuma religião é imune a este tipo de manipulação.

A isto acresce a tentação do poder, à qual os líderes da Ortodoxia Russa parecem ter sucumbido. Esta foi a terceira tentação colocada a Jesus no deserto, mas ele recusou “os reinos do mundo com toda a sua glória” que Satanás lhe ofereceu.

Esta é a tentação que por vezes levou a Igrejas, ao longo da sua história, a preferir salvar-se a si mesmas em vez de salvar a humanidade.

Desde a acessão de Kirill, o patriarca tem facilitado e apoiada a lógica de Putin, o que lhe permite beneficiar de subsídios confortáveis. Também lhe permite posicionar-se em instituições do Estado – polícia, exército, saúde e educação.

Esta Igreja renascida está de novo a florescer, tornou-se rica. Tem sido capaz de criar uma ilusão no Ocidente, através da qual até alguns prelados Católicos acreditaram que era um baluarte contra uma modernidade odiada e um relativismo insultado.

Mas a História, que temos por vezes experienciado de forma dolorosa no Oeste da Europa, tem mostrado claramente que as Igrejas não têm nada a ganhar, a longo prazo, de tal confusão de ordens.

Kirill vai deixar para trás belas catedrais no seu país… Que cedo se podem tornar monumentos vazios.

Artigo original de Isabelle de Gaulmyn, editora do La Croix, publicado a 2 de Abril de 2022