Arquidiocese de Braga -

9 março 2022

Padre angolano luta contra a invisibilidade da fome em Angola

Fotografia CNS

DACS com Crux

Padre Jacinto Pio Wacussanga já recebeu inúmeras ameaças pelo trabalho que realiza, mas recusa-se a desistir. Há quem o apelide de "verdadeiro herói".

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Embora uma seca severa no sul de Angola tenha levado à fome generalizada entre mais de 1 milhão de pessoas, o governo tomou poucas medidas para combatê-la.

No entanto, um padre católico está a agir.

O padre Jacinto Pio Wacussanga, do Lubango, na província dw Huíla, passou uma década a organizar agricultores e camponeses locais e a ajudá-los a adquirir novas habilidades em resposta à seca induzida pelas mudanças climáticas.

Os esforços do padre de 56 anos para ajudar os pobres e famintos, bem como as suas críticas à inacção governamental, foram reconhecidos por alguns e criticados por outros.

Recentemente, o Movimento Popular de Libertação de Angola – conhecido pela sigla MPLA – chegou ao ponto de negar a gravidade da crise humanitária em Angola. Em Dezembro, o presidente João Lourenço, membro do MPLA, afirmou durante um discurso que os seus “adversários” só falam de fome, mas “a fome é sempre relativa”.

“O país já tem uma grande produção de alimentos. Talvez por conveniência política, repetir incessantemente a palavra fome convém-lhes”, disse Lourenço numa reunião do MPLA, que governa Angola desde que o país conquistou a sua independência em 1975.

Wacussanga disse ter observado a luta de pessoas que sofrem de fome no seu trabalho na Missão Santo António dos Gambos, onde as pessoas chegam todos os dias em busca de ajuda.

“Infelizmente, o governo ultimamente tem adoptado uma atitude negacionista. Afirmar que parte dos angolanos passa fome seria um insulto às autoridades, que têm afirmado que se trata de um país de rendimento médio com um nível de desenvolvimento considerável”, disse Wacussanga ao Catholic News Service.

As secas são um problema cíclico em Angola, mas têm sido intensificadas nos últimos anos pelas alterações climáticas. O seu impacto é agravado pela estrutura social e económica do país, explicou Olívio N'Kilumbu, analista político e professor da Universidade Oscar Ribas, em Luanda, capital de Angola.

“As terras agrícolas foram ocupadas por oligarcas nas últimas décadas, a maioria ligada às forças armadas. Isso impediu que as populações tradicionais tivessem acesso a rios e terras para o gado, então tiveram que se mudar para outro lugar”, afirmou.

Os mais atingidos pela fome têm sido os pastores de há milhares de anos, com uma dieta tradicional à base de leite e mel. A seca e a concentração de terras tornaram impossível o seu modo de vida há muito praticado.

“Eles estão a marchar para a Namíbia, caminhando centenas de milhares de quilómetros por terras áridas. Muitas vezes, os seus filhos morrem durante essa jornada e são enterrados ao longo do caminho”, disse Wacussanga.

As pessoas passam pela missão do padre todos os dias a caminho da Namíbia. Wacussanga disse que consegue persuadir alguns a desistir da perigosa ideia, e até disponibilizou terras para um grupo cultivar hortaliças de rápido crescimento. Mas a maioria continua a ir para o Sul.

“Na Namíbia, o governo pelo menos oferece alguma ajuda. Aqui eles não recebem nada do Estado”, disse.

O economista Carlos Rosado de Carvalho disse que o governo angolano tem anunciado repetidamente medidas para minimizar os efeitos da seca, mas ainda não agiu.

“As autoridades só falam em fome quando enviam camiões carregados de alimentos para as regiões afectadas”, disse.

N'Kilumbu argumentou que a corrupção é outra questão relevante.

“Há algum tempo, havia um plano de construção de barragens para reter as águas pluviais. Sem a devida monitorizção, ninguém sabe o que é que foi feito com esse dinheiro”, disse.

As repetidas denúncias de Wacussanga tiveram consequências ao longo dos anos. Foi publicamente criticado e recebeu ameaças em várias ocasiões.

“Alguém disse ao meu arcebispo uma vez que eu estava a mentir e que «era melhor eu calar a boca». Felizmente, ele defendeu-me”, lembrou Wacussanga.

A sua firmeza é provavelmente inspirada no seu falecido mentor espiritual, o padre Leonardo Sikufinde, que foi morto numa emboscada por tropas do governo em 1985.

“Ele era um defensor dos direitos humanos e morreu pela sua defesa da vida”, disse Wacussanga. Na altura, Wacussanga era um jovem professor e ainda não se tinha decidido pelo sacerdócio, já que precisava de ajudar sua família.

“O assassinato de Sikufinde chocou-me tanto que decidi deixar tudo para trás e ir para o seminário”, disse Wacussanga.

Ordenado em 1995, desde então tem trabalhado na organização de camponeses que procuram recuperar terras e torná-las novamente cultiváveis.

Os desafios às vezes eram imensos. Em 2003, uma das organizações não-governamentais fundadas por Wacussanga recebeu notícias de um grupo de latifundiários de grande porte que violavam crianças e torturavam camponeses. As autoridades foram informadas e um inquérito foi aberto, mas houve um encobrimento e o padre começou a receber ameaças. Saiu de Angola por um tempo.

“Foi quando soubemos de uma oportunidade de estudar na Inglaterra. Completei um mestrado em construção da paz na Universidade de Bradford”, disse.

Um dos esforços de Wacussanga hoje é construir projectos de irrigação e cultivo e angariar recursos de fundações internacionais para o trabalho. Mas o esforço ganhou pouco apoio financeiro.

“A comunidade internacional não entendeu a gravidade da situação no Sul de Angola. O tempo perdido resultou em impactos maiores que agora precisam de ser enfrentados com urgência”, explicou.

Wacussanga também está a construir um centro de formação para líderes comunitários aprenderem agroecologia num esforço para reduzir a fome. “É um projecto que exigirá muito esforço ao longo dos próximos anos”, indicou.

N'Kilumbu disse que a parte mais significativa do trabalho do sacerdote tem sido a denúncia das injustiças sociais que vê todos os dias.

“Num país onde as emissoras de televisão são controladas pelo governo, a denúncia tem uma importância central”, disse. “Ele é um verdadeiro herói”.

Artigo de Eduardo Campos Lima, CNS, publicado no Crux a 7 de Março de 2022.