Arquidiocese de Braga -

21 janeiro 2022

Os Limites do Diálogo

Fotografia CNS photo/Gregory A. Shemitz

DACS com Commonweal

A razão pela qual Francisco tem sido tão duro com os tradicionalistas, segundo Austen Ivereigh.

\n

Em Dezembro, a Congregação para o Culto Divino de Roma respondeu às perguntas dos bispos sobre as novas restrições do Papa Francisco à liturgia pré-Vaticano II. A fúria e o desprezo que essa resposta recebeu eram esperados – mais do mesmo que se seguiu ao Traditionis Custodes, o motu proprio em que essas restrições foram anunciadas em Julho passado. Mas, desta vez, as familiares objecções dos tradicionalistas encontraram uma espécie de eco entre alguns católicos mais liberais.

O teólogo da Bellarmine University, Greg Hillis, por exemplo, escreveu na America sobre a aparente contradição entre o apelo do Papa na Fratelli tutti para um diálogo amoroso e o seu tratamento “estranhamente pesado” com os tradicionalistas. “Num momento em que nós, como Igreja, estamos a embarcar num caminho sinodal”, escreveu Hillis, “tenho dificuldade em entender o porquê de uma abordagem mais sinodal – mais dialógica – não estar a ser adoptada com os tradicionalistas”.

Essa crítica, por sua vez, levantou objecções. Como Rita Ferrone apontou na Commonweal, o Traditionis custodes foi fruto de um processo muito mais colegial do que aqueles que produziram os éditos litúrgicos dos antecessores de Francisco: Francisco tinha consultado bispos de todo o mundo antes de emitir as novas regras litúrgicas. Quanto à abertura ao diálogo, há limites para o que pode alcançar com aqueles que afirmam estar na posse exclusiva da verdade completa. Os enclaves tradicionalistas tornaram-se centros de resistência à própria ideia de uma tradição viva. Bento XVI não tinha previsto isso quando relaxou as restrições ao Rito Tridentino em 2007, mas aconteceu, e agora coube a Francisco devolver a Igreja à sua tradição de um único Rito Romano. A intitulada forma ordinária desse rito não era simplesmente uma alternativa à forma “extraordinária”, mas uma reforma dela – e uma reforma realizada num concílio ecuménico sob a orientação do Espírito Santo.

Ainda assim, Hillis não estava a questionar o direito de Francisco impor novas restrições, mas a perguntar se não havia uma maneira melhor. O seu argumento era que, além daqueles que estavam a usar as guerras da liturgia para enfraquecer o Papa e o Concílio Vaticano II, havia aderentes comuns ao rito mais antigo que não tinham nada contra o Vaticano II ou o Papa Francisco, e se sentiram, como resultado do Traditionis custodes, feridos e rejeitados.

 

A distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção é clara e fascinante. E a conclusão que deriva dessa distinção – que pecado e corrupção exigem respostas muito diferentes – explica por que escolheu Francisco agir como agiu diante da insurgência tradicionalista.

 

Esta foi a essência de uma carta enviada em Agosto do ano passado pelos superiores-gerais das comunidades Ecclesia Dei aos bispos de França. Não se reconheceram na descrição do tradicionalismo no Traditionis custodes, que afirmava que “o uso instrumental do Missale Romanum de 1962 é muitas vezes caracterizado por uma rejeição não apenas da reforma litúrgica, mas do Concílio Vaticano II”. Este “julgamento severo”, disseram eles, “cria um sentimento de injustiça e produz ressentimento”.

Os superiores-gerais continuaram, citando a Amoris laetitia, que, dada a ferocidade da rejeição tradicionalista da exortação apostólica na altura, pareceu um pouco oportunista, senão hipócrita. Mas também foram astutos. Onde estava o rosto misericordioso de Deus num documento que ordenava que as missas tradicionalistas não fossem anunciadas nas paróquias? Onde estava a atenção ao particular? E os excêntricos destacados por Stephen G. Adubato no National Catholic Reporter – os neurodivergentes e não ideológicos tradicionalistas, aqueles com Asperger ou introversão extrema? Esses inocentes não foram martelados?

A pergunta incomodou-me durante o Natal. Qual foi a chave para o discernimento de Francisco neste caso? Então lembrei-me de uma palestra que o Papa havia proferido em Março de 1991, que mais tarde foi publicada como ensaio, com o título “Algumas reflexões sobre o tema da corrupção”. E, ao relê-lo, entendi.

“Corrupção e Pecado” é um dos escritos do Pe. Jorge Mario Bergoglio mais bem argumentados e matizados na altura do seu chamado “exílio em Córdoba”, no início dos anos 1990. Foi uma época de grande desolação e sofrimento para o antigo líder da Província Jesuíta Argentina, mas também de grande fecundidade, período em que produziu os seus melhores escritos. A distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção é clara e fascinante. E a conclusão que deriva dessa distinção – que pecado e corrupção exigem respostas muito diferentes – explica por que escolheu Francisco agir como agiu diante da insurgência tradicionalista.

 

Por outro lado, o pecador – mesmo quando não está pronto para se arrepender – sabe que é um pecador e anseia por se entregar à misericórdia de Deus. Esta é a distinção-chave: o pecador permanece, ainda que obscura e inconscientemente, aberto à graça, enquanto os corruptos negam que pecam.

 

Embora a corrupção esteja obviamente ligada ao pecado – resultante de pecados repetidos e aprofundados ao longo do tempo – é diferente em aspectos cruciais, principalmente no modo distinto de proceder da pessoa corrupta. Por isso, escreve Bergoglio, “poderíamos dizer que enquanto o pecado é perdoado, a corrupção não pode ser perdoada”, pois na raiz da corrupção está a recusa do perdão de Deus. A pessoa ou organização corrompida não vê necessidade de arrependimento, e o seu sentido de auto-suficiência gradualmente passa a ser considerado natural e normal.

A menos que seja corrigida, a corrupção aprofunda-se com o tempo, pois os corruptos, longe de serem na realidade auto-suficientes, são de facto escravos de um “tesouro” que conquistou os seus corações – por exemplo, dinheiro, poder, honra ou privilégio. Para disfarçar essa escravidão, os corruptos cultivam energicamente uma aparência de rectidão e boas maneiras. Sempre a justificar-se, convencem-se finalmente da sua própria superioridade moral.

Por outro lado, o pecador – mesmo quando não está pronto para se arrepender – sabe que é um pecador e anseia por se entregar à misericórdia de Deus. Esta é a distinção-chave: o pecador permanece, ainda que obscura e inconscientemente, aberto à graça, enquanto os corruptos negam que pecam. Encapsulados pelo seu orgulho, excluem a possibilidade da graça.

Ao contrário do pecado, a corrupção não é perdoada, mas “curada”. Mais do que o diálogo, que serviria apenas para alimentar a auto-justificação do corrupto, a resposta adequada é colocá-lo em crise. Como Bergoglio observa numa nota de rodapé, o Senhor cura os corruptos não por meio de actos de misericórdia, mas por meio de grandes provações: doença grave, falência, morte súbita de entes queridos, o FBI a invadir os seus gabinetes. Esses traumas têm o potencial único de “derrubar a armadura da corrupção e permitir que a graça entre”, escreve Bergoglio.

 

Certos tipos de comportamento servem como indicadores de corrupção. Os corruptos justificam-se tipicamente com comparações com outros, como o Fariseu em Lucas 18:11. Outro sinal de alerta é o triunfalismo. Enquanto o pecador sente não apenas culpa, mas vergonha, os corruptos são triunfalmente sem vergonha.

 

Francisco tem usado muitas vezes a armadura como uma metáfora para descrever o coração fechado a Deus. Fê-lo recentemente na Missa da Epifania, quando disse que a fé “não é uma armadura que nos reveste”, mas “uma jornada fascinante, um movimento constante e inquieto, sempre em busca de Deus, sempre a discernir o nosso caminho a seguir”. Tratar a fé como uma armadura – um meio de autodefesa – é corrompê-la e à própria pessoa.

Certos tipos de comportamento servem como indicadores de corrupção. Os corruptos justificam-se tipicamente com comparações com outros, como o Fariseu em Lucas 18:11. Outro sinal de alerta é o triunfalismo. Enquanto o pecador sente não apenas culpa, mas vergonha, os corruptos são triunfalmente sem vergonha. Garantem cúmplices, oferecendo-lhes o mesmo sentimento de superioridade e auto-satisfação.

É fácil ver por que a resposta de Francisco à máfia italiana foi não-dialógica, até mesmo “impiedosa”: ameaçando o inferno se não se arrependerem, avisando-os para renunciarem à sua “cultura da morte” e assim por diante. Para assassinos violentos do crime organizado que se consideram católicos, receber uma admoestação do Papa pode, possivelmente, desencadear uma crise suficiente para perfurar a armadura da corrupção deles. Na mesma linha, Francisco tem ordenado frequentemente que comunidades religiosas abusivas ou corruptas sejam investigadas ou até mesmo encerradas.

No seu ensaio, Bergoglio discute a corrupção da época de Jesus, sobretudo nas elites religiosas da época: Fariseus, Saduceus, Essénios e Zelotes. Todos desenvolveram doutrinas e rituais — um legalismo rígido ou um ritualismo de pureza — que escondiam a sua corrupção e lhes permitiam manter-se distantes do povo, a quem desprezavam como pecadores. A exacta natureza da corrupção diferia em cada um dos quatro grupos, mas manifestava-se sempre numa atitude de superioridade remota.

Bergoglio observa, também, que a resposta de Jesus aos corruptos envolveu recordar a promessa de redenção que Deus fez a todo o povo, reler as Escrituras à luz dessa promessa e realizar a proximidade de Deus com os pobres nos seus actos e palavras. Como o Papa Francisco diz em “Let us Dream”, “Jesus teve que rejeitar a mentalidade das elites religiosas da sua época, que se apropriaram da lei e da tradição. A posse dos bens da religião tornou-se um meio de se colocarem acima dos outros, outros não como eles, que inspecionavam e julgavam”. Ao caminhar com os pobres e marginalizados, diz Francisco, Jesus “derrubou o muro que impedia o Senhor de se aproximar do Seu povo, entre o Seu rebanho”.

 

Esses tradicionalistas vêem-se como o remanescente fiel de uma Igreja em desordem, da qual precisam de se defender. Este é o conhecimento especial que apenas a eles é revelado, que justifica manterem-se distantes do catolicismo pós-conciliar dominante e exigirem a adesão a rituais e regras especiais para evitar a contaminação da modernidade.

 

Francisco vê o movimento tradicionalista como corrupto? Ele não usou a palavra, mas as suas acções sugerem isso. Como alguém que lhe é próximo me disse, o Papa sentiu-se compelido, na Traditionis custodes, a “lidar com o crescimento dessa ideologia desencarnada com caridade, compreensão e coragem para colocar as coisas no seu lugar”. As palavras “crescimento” e “colocar as coisas no seu lugar” são sugestivas: trata-se de um esforço para estabelecer limites e impedir uma expansão. O arcebispo Augustine Di Noia, secretário adjunto americano da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), disse ao Catholic News Service que o tradicionalismo “ficou totalmente fora do controlo”, tornando-se “um movimento que promove agressivamente a Missa Latina Tradicional (MLT) entre os jovens e outras pessoas como se esta «forma extraordinária» fosse a verdadeira liturgia para a verdadeira igreja”.

Di Noia é vice-presidente da comissão Ecclesia Dei, que supervisiona as relações com os tradicionalistas, e coordenou diálogos com a Fraternidade de São Pio X. A investigação com os bispos que realizou a pedido de Francisco mostrou, disse ele, que o movimento MLT “sequestrou as iniciativas de São João Paulo II e Bento XVI para os seus próprios fins”. Promoveu a divisão ao rejeitar a reforma fundamental do Concílio Vaticano II, a reforma da liturgia. No seu “pior”, disse Di Noia, o movimento representa “uma resistência perversa à renovação inspirada pelo Espírito Santo e solenemente confirmada no ensinamento de um concílio ecuménico”.

Esses comentários, juntamente com a carta que o Papa Francisco enviou aos bispos quando o Traditionis custodes foi promulgada pela primeira vez, deixam poucas dúvidas de que ele acredita estar a enfrentar corrupção. Embora exteriormente piedosa e religiosa, é inconfundivelmente um tipo de ideologia. Esses tradicionalistas vêem-se como o remanescente fiel de uma Igreja em desordem, da qual precisam de se defender. Este é o conhecimento especial que apenas a eles é revelado, que justifica manterem-se distantes do catolicismo pós-conciliar dominante e exigirem a adesão a rituais e regras especiais para evitar a contaminação da modernidade. Que essa ideologia corruptora permeia agora a cultura do movimento tradicionalista é claro para qualquer um que – como Rachel Dobbs – a tenha visto de dentro.

Hillis e outros críticos irénicos do Traditionis custodes parecem não ter notado isso. Apresentam os tradicionalistas como pessoas com gostos litúrgicos inofensivos, embora peculiares – como se o tradicionalismo fosse simplesmente uma questão de preferir rendas e canto gregoriano ao sinal da paz e guitarras folclóricas. Peter Seewald mostra uma ingenuidade semelhante no volume dois do seu “Bento XVI: Uma Vida,” em que descreve o gosto pelo Missal antigo como uma tendência cultural, uma reacção ao “vinho adulterado e à fast food” que nada tem que ver com a oposição ao Vaticano II. E, enquanto o biógrafo de São João Paulo II, George Weigel, aceita que “alguns proponentes” do Rito Antigo “se considerem o único remanescente fiel de uma Igreja decadente”, rejeita a sugestão de que “este é o novo normal” para os participantes da Missa tradicionalista.

 

Tendo em mente a distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção, a ausência de contrição real também diz muito. Em resposta ao Traditionis custodes, alguns tradicionalistas reconheceram a possibilidade hipotética do pecado, mas nunca admitiram qualquer transgressão real.

 

Mas, nesse caso, porque é que eles – aqueles que vão puramente por amor a essa forma de liturgia – não se levantam contra os seus líderes auto-nomeados, para quem o tradicionalismo é claramente muito mais? Onde estão os movimentos internos “não em meu nome”, o repúdio aos ideólogos, os apelos à renovação? No mínimo, podemos esperar apelos para um rigoroso auto-exame. No entanto, é impressionante como raramente se encontram “bons” tradicionalistas a repudiar as biliosas denúncias de Francisco e do Vaticano II que inundam a internet, ou o desafio “reconhecer e resistir” dos sumos sacerdotes do tradicionalismo, com as suas conspirações QAnon e alegações de conspirações globalistas.

Tendo em mente a distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção, a ausência de contrição real também diz muito. Em resposta ao Traditionis custodes, alguns tradicionalistas reconheceram a possibilidade hipotética do pecado, mas nunca admitiram qualquer transgressão real. “Estamos prontos, como todo o cristão, a pedir perdão se algum excesso de linguagem ou desconfiança da autoridade se infiltrar em algum dos nossos membros”, dizem os superiores gerais da Ecclesia Dei. “Estamos prontos para nos convertermos se o espírito de partido ou o orgulho poluíram os nossos corações”. Porquê “se”? Não é o “espírito de partido e orgulho” algo pelo qual o tradicionalismo se tornou famoso?

Na mesma linha, a Fraternidade da Missa Latina sediada no Reino Unido, diz: “Deus está a chamar-nos para expiar os nossos pecados”, mas é em vão que alguém pesquisa no seu site por qualquer reconhecimento de quais possam ser esses pecados. No lugar da contrição real, encontra-se indignação, queixas, desafio e auto-justificação, uma interminável efusão de objecções legais cuidadosamente analisadas, e queixas de que o Papa não tem a prerrogativa ou jurisdição para restringir a prática da Missa pré-conciliar, juntamente com uma insistência dolorosa de que tudo o que qualquer um quer é ser deixado em paz para rezar como os seus antepassados ​​faziam.

 

Uma abordagem sinodal é o “estilo de Deus” com pessoas de boa vontade, por maiores que sejam os seus pecados ou divergências. Mas o diálogo não pode curar a corrupção. A resposta misericordiosa aos corruptos é colocar um obstáculo, um skandalon, no seu caminho, forçando-os a tomar outro.

 

Tais reacções revelam a profundidade da corrupção. É por isso que Francisco não “dialogou” com o movimento tradicionalista, mas, em vez disso colocou os bispos a regulá-lo. Ao agir com firmeza, criou uma crise que pode trazer, aos que estão prontos para isso, um momento de acordar para a realidade. Um membro do Opus Dei tweetou sobre um jovem padre tradicionalista que  conhece e que percebeu que Francisco fez a coisa certa. O padre havia celebrado tanto o Rito Tridentino quanto o reformado Rito Romano num hospital, e notou que certas pessoas que aguardavam a Missa antiga se levantavam e saíam se ele celebrasse o Rito reformado. Percebeu que tinham construído toda a sua identidade como católicos em torno da MLT e que não podiam reconhecer a presença de Cristo na Eucaristia da liturgia reformada. Essa identidade, percebeu o padre, não era espiritualmente saudável e precisava de ser desafiada.

Uma abordagem sinodal é o “estilo de Deus” com pessoas de boa vontade, por maiores que sejam os seus pecados ou divergências. Mas o diálogo não pode curar a corrupção. A resposta misericordiosa aos corruptos é colocar um obstáculo, um skandalon, no seu caminho, forçando-os a tomar outro. Deve oferecer-se primeiro àqueles que estão prontos para isso uma fuga da corrupção. E, então, se aceitarem, pode-se recebê-los de volta ao rebanho de braços abertos.

 

Artigo de Austen Ivereigh, publicado na Commonweal a 20 de Janeiro de 2022.