Arquidiocese de Braga -

23 novembro 2021

Mulheres consagradas que se tornaram vítimas: as suas histórias em livro

Fotografia AFP

DACS com Vatican News

Chega hoje às livrarias o volume de Salvatore Cernuzio intitulado “O véu do silêncio. Abusos, violência, frustrações na vida religiosa feminina”, editado pela San Paolo. O "Vatican News" publicou o prefácio do livro escrito pela Irmã Nathalie Becquart, su

\n

Este livro de testemunhos faz-nos ouvir os gritos e sofrimentos muitas vezes silenciados, os das mulheres consagradas que entraram nas comunidades religiosas para seguirem Cristo e que se viram vítimas de situações dolorosas que, a muitas delas, levaram a abandonar a vida consagrada. O autor ouve as suas histórias com empatia para dar voz a essas mulheres feridas que procuram reconstruir-se e fazer sentir a sua experiência, as suas lutas, a sua esperança. Deste modo, contribui para aumentar a nossa consciência sobre os problemas dos abusos na vida religiosa, dando prioridade à escuta das vítimas que não se sentiram acolhidas, respeitadas, reconhecidas e bem acompanhadas na sua comunidade. Quero prestar homenagem a essas mulheres que corajosamente concordaram em falar e dar o seu testemunho autêntico. Devemos, portanto, ouvi-las, senti-las e ganhar consciência de que a vida consagrada na sua diversidade, como outras realidades eclesiais, pode gerar o melhor e o pior. O melhor quando os votos religiosos de pobreza, castidade e obediência são propostos como um caminho de crescimento humano e espiritual, um caminho de amadurecimento que faz crescer a liberdade das pessoas porque “a autoridade é chamada a promover a dignidade da pessoa”. O pior quando os votos religiosos são interpretados e implementados de uma forma que infantiliza, oprime ou até manipula e destrói as pessoas.

Este livro, portanto, convida-nos a olhar a realidade de frente e a dizer a verdade, a procurar os caminhos possíveis para acompanhar as pessoas que sofrem na vida religiosa ou que a abandonaram e devem reconstruir-se. Mas, acima de tudo, procura formas de prevenir essas possíveis variações, ajudando as comunidades religiosas a adoptarem um estilo cada vez mais sinodal. Com efeito, como nos lembra a primeira parte do Documento Preparatório do próximo Sínodo sobre a Sinodalidade, que define o contexto deste processo sinodal: “No entanto, não podemos negar que a própria Igreja deve enfrentar a falta de fé e a corrupção, inclusive no seu interior. Em particular, não podemos esquecer o sofrimento vivido por menores e pessoas vulneráveis «por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas».4 Somos continuamente interpelados, «como Povo de Deus, a assumir a dor de nossos irmãos feridos na sua carne e no seu espírito». Durante demasiado tempo, o grito das vítimas foi um clamor que a Igreja não soube ouvir suficientemente. Trata-se de feridas profundas, que dificilmente se cicatrizam, pelas quais nunca se pedirá perdão suficiente, e que constituem obstáculos, às vezes imponentes, para prosseguir na direção do “caminhar juntos”. A Igreja inteira é chamada a confrontar- se com o peso de uma cultura impregnada de clericalismo, que ela herdou da sua história, e de formas de exercício da autoridade nas quais se insinuam os vários tipos de abuso (de poder, económico, de consciência, sexual). É impensável «uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus»: juntos, peçamos ao Senhor «a graça da conversão e da unção interior para poder expressar, diante desses crimes de abuso, a nossa compunção e a nossa decisão de lutar com coragem”.

Todos somos chamados, portanto, a tomar consciência dessas práticas erróneas de obediência e de exercício da autoridade na Igreja, que infelizmente surgiram tanto nas paróquias como nas antigas e novas comunidades de vida consagrada ou associações de leigos. Devemos ouvir o forte apelo do Papa Francisco à conversão pastoral, que exige que abandonemos o modelo clerical da Igreja e entremos numa visão da Igreja sinodal que implique a escuta e a participação de todos, e a assunção da responsabilidade conjunta. Porque todos, baptizados, discípulos missionários, têm igual dignidade e devem ser considerados sujeitos e actores da missão. Todos, habitados pelo Espírito, são chamados a fazer ouvir a sua voz. Para continuar a anunciar a Boa Nova do Evangelho no mundo de hoje, a Igreja deve redescobrir e pôr em prática a sinodalidade que faz parte da sua própria natureza. Ou seja, discernir os modos de viver esta dinâmica de comunhão, este “nós” eclesial que respeita e integra a diversidade do “eu” singular, esta aceitação e valorização da diversidade dos carismas porque o Espírito Santo fala em cada um e a obediência na Igreja deve ser sempre uma escuta comum do Espírito.

Em certo sentido, através deste livro, Salvatore Cernuzio dá-nos uma percepção muito concreta daquilo que a Congregação para a Vida Consagrada claramente destacou no seu importante documento de orientação “Para vinho novo, odres novos” (2017), o desafio de uma renovação necessária e de uma formação adequada no exercício da obediência e autoridade. O documento sublinha: “Em alguns casos, a colaboração não é promovida pela «obediência activa e responsável», mas pela submissão infantil e pela dependência escrupulosa. Deste modo, a dignidade da pessoa pode ser prejudicada até ao ponto da humilhação. Nestas novas experiências ou em outros contextos, a distinção entre o foro externo e o interno nem sempre é correctamente considerada e devidamente respeitada”.

Assim, nesta mudança de época em que vivemos, devemos reconhecer que: “A obediência e o serviço à autoridade continuam a ser questões altamente sensíveis, também porque as culturas e os modelos passaram por transformações profundas, sem precedentes e, em alguns aspectos, talvez até desconcertantes pelo menos para alguns. No contexto em que vivemos, a própria terminologia de «superiores» e «súbditos» já não é adequada. O que funcionou num contexto relacional piramidal e autoritário já não é desejável ou habitável na sensibilidade da comunhão da nossa forma de compreender e querer ser Igreja. É de ter presente que a verdadeira obediência não pode deixar de colocar a obediência a Deus em primeiro lugar, tanto da autoridade quanto daqueles que obedecem, assim como não pode deixar de referir-se à obediência de Jesus; obediência que inclui o seu grito de amor Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,36) e o silêncio de amor do Pai”.

Que este livro, que nos convida a olhar para o lado negro de algumas realidades da vida consagrada, nos ajude a ouvir e implementar o urgente convite do Papa Francisco “a todas as comunidades do mundo [para] um testemunho de comunhão fraterna que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais, animais e ajudais»”.

 

Prefácio da Irmã Nathalie Becquart, subsecretária da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, publicado em Vatican News a 23 de Novembro de 2021.