Arquidiocese de Braga -

18 novembro 2021

Comissão sobre Abuso diz que a Igreja está “fixada” na moralidade sexual

Fotografia DR

DACS com La Croix International

Comissão Independente da França sobre Abuso Sexual na Igreja desafia os líderes católicos a examinarem o paradoxo de como a moralidade sexual estrita fomentou o abuso sexual.

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Nove em cada dez católicos na França acreditam firmemente que a Igreja precisa de mudar a sua atitude em relação ao sexo, de acordo com as conclusões de uma sondagem no mês passado que foi co-patrocinada pelo La Croix.

Muitos teólogos no país concordam com essa avaliação. Um deles disse que reformular o ensino da Igreja sobre a sexualidade humana é um dos desafios mais “urgentes” e mais “difíceis” que o catolicismo contemporâneo enfrenta.

A Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE), que publicou recentemente um relatório chocante sobre casos de abuso na França nos últimos 70 anos, concorda.

Uma das recomendações feitas nesse relatório é a de examinar cuidadosamente “como o excesso paradoxal da fixação da moralidade católica em questões sexuais pode ter um valor contraproducente na luta contra o abuso sexual”.

O relatório da CIASE observa que a persistente inflexibilidade da Igreja em questões sexuais levaram a uma situação paradoxal em que alguns católicos, especialmente padres, cometeram graves transgressões de acordo com a ideia de que “se não forem respeitadas todas as leis, então não se respeita absolutamente nada”.

 

Nem todos os pecados são igualmente graves

Soma-se a isto a confusão sobre os vários “pecados contra a carne”, que a tradição católica agrupou sob a égide do sexto mandamento: “Não cometerás adultério”.

“A enumeração dos actos sem a gradação da sua seriedade é altamente problemática porque, por exemplo, não se pode colocar a masturbação e a violação no mesmo nível”, lamentou Marie-Jo Thiel, uma católica e premiada especialista em Ética que ensina Teologia na Universidade de Estrasburgo.

Tal como outras pessoas, considera a violação como “um crime que mata outro”, o que na verdade é uma violação do quinto mandamento, e não do sexto.

“Ainda hoje, tudo o que sai do enquadramento promovido pela Igreja seria «errado»”, diz a irmã dominicana Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (Corref).

“Assim, mantemos a confusão entre o errado e o fracasso, com que todos os seres humanos se deparam num momento ou outro na sua vida emocional e sexual. Como resultado, não sabemos como reconhecer o que é realmente errado, como violência sexual, ou perceber a outra pessoa como um objecto”, disse.

 

“A ética sexual católica permanece muito normativa”

O foco do catolicismo na sexualidade e na procriação intensificou-se desde o século XIX em proporção à perda de influência sociopolítica. Mas esse foco, na verdade, remonta aos primórdios do cristianismo.

A contribuição de Santo Agostinho de Hipona é particularmente “pesada” nesta matéria, segundo Alain Thomasset SJ, professor do Centre Sèvres, a escola jesuíta de teologia de Paris.

“Para Santo Agostinho, o desejo sexual continuava a ser um efeito do pecado original. Só se salva pelo acto da procriação dentro do casamento”, disse.

O Concílio Vaticano II certamente abriu a sexualidade a outros propósitos que não a procriação, como a comunhão entre os cônjuges. Mas Thomasset acredita que ainda há muito trabalho a ser feito para transcender a cultura do que é “meramente permitido e do que é proibido” e para ampliar a nossa visão.

“A ética sexual católica continua muito normativa”, observou o jesuíta. “É muito mais normativa do que a doutrina social da Igreja, que leva em conta as relações, as circunstâncias, as intenções, a complexidade da realidade, etc. A antropologia relacional, já presente na doutrina social, seria bem-vinda na ética sexual”, argumentou.

 

Uma Igreja a que as pessoas já não dão ouvidos?

A encíclica Humanae vitae, de 1968, com a sua proibição da contracepção artificial, contribuiu muito para desacreditar o discurso da Igreja sobre a sexualidade.

De seguida, o livro de 2019, No armário do Vaticano, que alegou a existência generalizada da homossexualidade (e pedocriminalidade) entre padres e bispos em Roma, pareceu enfraquecer ainda mais a voz da Igreja sobre o assunto.

Alguns católicos lamentam isto. Acreditam que a Igreja está certa em insistir que os nossos corpos são um presente de Deus que não deve ser abusado ou que a intimidade sexual não deve ser banalizada numa época em que a pornografia nunca foi tão facilmente acessível.

Então, é concebível que possa haver uma evolução do ensino da Igreja sobre a sexualidade humana?

“Em primeiro lugar, devemos ter em mente que boa parte do episcopado francês permanece marcado pela herança de João Paulo II e Bento XVI, que defenderam uma moral sexual com normas claras, em nome da natureza humana”, destacou Francine Charoy, uma teóloga que leccionou por vinte anos no Instituto Católico de Paris.

 

Ir além de um “confronto entre duas partes”

O Papa Francisco teve uma abordagem diferente, encorajando mais discernimento em situações complexas. Mas não mudou a doutrina da Igreja quanto ao conteúdo do assunto.

Isto deixou alguns teólogos “decepcionados”. Eles acreditam que o Papa poderia fazer mudanças no Catecismo da Igreja Católica (que, entre outras coisas, chama os actos homossexuais de “intrinsecamente desordenados”), como fez em 2018 no que diz respeito à pena de morte.

Charoy, entretanto, quer ver a Igreja a ir além de um “confronto entre duas partes”, progressista e conservadora.

“Precisamos de trabalhar na sinodalidade entre diferentes teólogos, para analisarmos juntos a negação quanto à pedocriminalidade em que a instituição tem permanecido há tanto tempo”, argumentou.

A teóloga afirmou que uma forma de começar seria desmontar a “cultura do silêncio” destacada pelo relatório da CIASE.

 

Artigo de Mélinée Le Priol, publicado no La Croix International a 17 de Novembro de 2021.