Arquidiocese de Braga -
8 novembro 2021
“Porque me mantenho na Igreja”
DACS com La Croix International
Dois padres, ambos abusados sexualmente quando eram jovens, explicam porque não se afastaram.
Como noutras partes do mundo, onde a crise dos abusos se desenrolou anos e até décadas antes, alguns católicos franceses questionam se podem continuar a permanecer na Igreja.
É uma questão que os bispos franceses terão ponderado na semana passada, durante a assembleia plenária no Santuário Mariano de Lourdes.
E é algo de muito pessoal para Patrick Goujon, um padre jesuíta, e Jean-Luc Souveton, um padre da Diocese de Saint-Etienne. Ambos foram abusados quando eram jovens.
Falaram com Florence Chatel, do La Croix, sobre as suas provações, a sua luta com a fé na Igreja e a sua esperança para o futuro.
Foram vítimas de padres pedocriminosos na vossa infância ou adolescência. E, ainda assim, tornaram-se sacerdotes. Já pensaram em deixar a Igreja?
Patrick Goujon: Tive amnésia traumática por quarenta anos. Quando a memória das minhas agressões voltou, revi as minhas razões para ser padre. Mas a questão de “permanecer na Igreja” não surgiu nesse momento. Por outro lado, quando era adolescente, fiz-me esta pergunta porque já me sentia muito incomodado com a relação com o poder na Igreja. Tinha descoberto outra visão ao ler os textos do Vaticano II. Correspondia à realidade ordinária que eu estava a viver em Verdun na vida paroquial e diocesana de meados da década de 1980. O que se seguiu foi mais complicado para mim por causa do endurecimento da Igreja. Lembro-me do discurso de João Paulo II sobre a moral sexual em Estrasburgo em 1988, os aplausos, enquanto a maioria dos jovens presentes faziam o contrário. Chocado, disse a mim mesmo: “Todos estão a fingir e a verdade não se encontra”. Hoje, esta relação distorcida com a verdade na Igreja está a estourar. Isto não me faz querer deixar a Igreja, mas reformar a nossa relação com a verdade.
Jean-Luc Souveton: Sempre guardei a memória do que vivi, mas de uma forma muito dissociada. Levei algum tempo para perceber o quanto essa agressão sexual afectou a minha vida. Tinha grandes dificuldades em relacionar-me com as pessoas e uma relação distante com a hierarquia, como se vivesse em perigo permanente diante da autoridade. Muitas pessoas perguntam-me como é possível que me tenha tornado padre. Uma figura salvou-me: o padre no romance “As Chaves do Reino”, de AJ Cronin. Para mim, ser padre é ser um servidor da vocação única de cada pessoa; se não for bem-vinda e cumprida, algo está em falta no plano de Deus. Se eu fosse embora, estaria a negar algo essencial para mim, e isso destruir-me-ia ainda mais. Muitas pessoas estão relutantes em afastar-se porque sentem-se culpadas por deixarem Cristo. Não é isso que me impede. Esse tipo de discurso proíbe a denúncia das suas disfunções, insinuando que [a denúncia] seria prejudicial a Cristo. Lanço-me contra a Igreja na medida da esperança que ainda tenho nela.
O relatório da Comissão Independente sobre o Abuso Sexual (CIASE) causou um terramoto na Igreja. Como se sentiram em relação a essas reacções?
Patrick Goujon: Nos discursos que se seguiram ao relato, a emoção prevaleceu. A vergonha e a raiva eram inevitáveis, mas tornaram-se um instrumento de comunicação na Igreja. No entanto, as recomendações do CIASE começam com uma educação da consciência. É de temer que alguns dos bispos em funções hoje sejam aqueles que encobriram até casos recentes. Mas falam como se tivessem acabado de tomar posse. Quando é que tomaram consciência das responsabilidades que não assumiram? Pedir perdão às vítimas e garantir que oramos por elas não nos compromete com nada.
Jean-Luc Souveton: Estou cansado de rezar por nós! Sugiro que quem deseja rezar pelas vítimas assuma a Oração Eucarística na qual se diz: “Abra os nossos olhos às necessidades dos nossos irmãos; inspire em nós palavras e acções para confortar aqueles que trabalham e estão sobrecarregados. Faz-nos servi-los verdadeiramente…". A questão do perdão é muitas vezes apresentada como uma garantia para as vítimas serem curadas. Isso coloca sobre elas a responsabilidade pelo seu próprio infortúnio. Um padre idoso costumava dizer-me antes de confessar que tinha de “deixar a roupa suja encharcar”. Desde que não seja afectado pelo que o pecado fez na vida do outro e na própria vida, o pedido de perdão surge demasiado cedo. Não permite tempo para a roupa suja encharcar no sentido de acolher as vítimas feridas por acções passadas, mas também presentes. Há três meses, ouvi-me dizer: “Jean-Luc, mantiveste-te quieto por quarenta anos, não podias continuar?”.
As vossas vozes foram libertadas: isto mudou a vossa relação com a Igreja?
Jean-Luc Souveton: Ao falar, tomei conhecimento de que havia violência institucional regular na Igreja. Para mim, era uma espécie de sociedade perfeita. Abandonei a ingenuidade. Quando soube que 330.000 pessoas passaram pelo mesmo que eu, chorei durante horas.
Patrick Goujon: Cancelei os meus compromissos durante dois dias. Não conseguia falar. Como o Jean-Luc, também tive que abandonar a negação sobre a violência na igreja. Alguns padres sabiam dos crimes do meu agressor e não fizeram nada. Encontrei-me num estado de stress pós-traumático. Não suporto as interacções cuidadosas entre mim e os outros. O acto mais espiritual do relatório Sauvé é ter-nos mostrado que estas agressões sexuais na Igreja são contra o quinto mandamento “Não matarás”. As vítimas não morreram. Mas alguns suicidaram-se e outros ainda estão a sofrer. Há seis anos, um médico comentou comigo: “É estranho, tens sintomas de doença auto-imune, mas não conseguimos encontrar nada”. De seguida, já na porta, perguntou-me se eu tinha sofrido abusos quando era criança, uma vez que havia uma correlação estatisticamente estabelecida entre as duas coisas. Não ressuscitamos assim tão rapidamente. Estamos realmente na terra dos vivos, mas a morte criminal ainda tem efeitos físicos e psicológicos. Temos uma experiência de salvação, mas a Paixão continua também. Todas as manhãs, tenho fazer vinte minutos de exercícios para libertar o meu corpo.
Padre Jean-Luc Souveton, estará com outras vítimas na assembleia episcopal de Lourdes. Que medidas fortes é que todos vocês esperam?
Jean-Luc Souveton: Espero que os bispos se levantem como um só para dizer que reconhecem a responsabilidade sistémica da Igreja e que estão abertos ao direito de as vítimas pedirem reparação. Um dia, um bispo disse-me: “Estamos à procura de algo que te possa acalmar…”. Não quero ser acalmado, quero que seja feita justiça. Uma das coisas que mais me magoa é a Igreja reagir sob coação. Mas um gesto coagido não terá o efeito terapêutico e salvífico de um gesto executado livremente.
Patrick Goujon: Algumas das recomendações do relatório podem servir de exame de consciência. Ressoam com a mais forte tradição cristã. Em vez de resolver implementá-las fazendo das tripas coração, há motivo para regozijo. Espero que os bispos leiam o relatório, que o acolham, que reflictam. Não espero que tenham soluções imediatamente, mas espero que tomem decisões para trabalhar e mudar o que precisa de ser mudado o mais rápido possível. Estou cheio de esperança, mas também de vigilância.
Entrevista de Florence Chatel, publicada no La Croix International a 6 de Novembro de 2021.
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