Arquidiocese de Braga -
14 junho 2021
Conheça o bibliotecário do Vaticano que era o Gordon Ramsay da sua época
DACS com Crux
Bartolomeo Sacchi foi escolhido como o primeiro prefeito da Biblioteca do Vaticano pelo Papa Sisto em 1478.
Esta terça-feira marcará o 546º aniversário da fundação da Biblioteca do Vaticano, a 15 de Junho de 1475, pelo Papa Sisto IV, o pontífice que ajudou a inaugurar o renascimento italiano com o seu mecenato ao ensino e às artes. Isto torna o momento adequado para relembrar uma figura que desempenha um papel fundamental na história da instituição, mesmo que ele esteja praticamente esquecido hoje em dia.
Bartolomeo Sacchi foi escolhido como o primeiro prefeito da Biblioteca do Vaticano pelo Papa Sisto em 1478. Hoje, um fresco célebre do artista Melozzo da Forlì capta o momento da nomeação, mostrando Sacchi ajoelhado diante do Papa e apontando para um livro que regista as suas realizações culturais, que está agora preservado nos Museus do Vaticano.
Duas coisas tornam a história de Sacchi especialmente, bom, “apetitosa”.
Primeiro, apenas uma década antes da sua nomeação, foi acusado de fazer parte de uma conspiração para matar o Papa anterior, Paulo II, tendo sido preso e torturado – acabou por perder a sensação num dos braços – por mais de um ano no Castelo de Santo Ângelo. A mudança da sua sorte sob o sucessor de Paulo ilustra o quão rápido as coisas podem mudar na Igreja Católica quando há uma mudança de administração.
Em segundo lugar, Sacchi, com o seu pseudónimo “Platina”, também foi o autor do livro de receitas mais vendido da época, um tratado extremamente popular intitulado De honesta voluptate et valetudine (“Sobre o prazer respeitável e boa saúde”). Historicamente, foi o primeiro livro de receitas reproduzido através de uma impressora mecânica.
Em certo sentido, Sacchi era o Gordon Ramsay da sua época. A personalidade revelada no livro é maliciosa, snobe e irascível, tudo revestido de uma forte camada de espectáculo. Entre outras coisas, o facto de o legado de Sacchi incluir tanto a história eclesiástica, quanto a gastronomia, mostra como o altar e a mesa sempre estiveram ligados, permanecendo assim até hoje, na Itália.
Para começar com o enredo de 1468, os historiadores ainda hoje debatem se, e em que medida, foi sequer real. O que sabemos é que em Fevereiro daquele ano, o Carnaval anual de Inverno de Roma estava a chegar ao fim, apresentando uma corrida especial para judeus pelo centro da cidade, durante a qual os romanos foram encorajados a atirar lama e pedras aos participantes. Paulo II foi informado por um dos seus assessores que um informante tinha deixado escapar detalhes de um plano para assassiná-lo a 2 de Março, Quarta-Feira de Cinzas daquele ano.
O Papa Paulo conhecia bem a história recente de Roma e não arriscou, ordenando que todos os supostos participantes fossem presos. Embaraçosamente, Sacchi, que estava ao serviço papal na altura como uma espécie de funcionário tributário, teve de ser levado sob custódia de casa do seu patrono, o cardeal Francesco Gonzaga, que fora encarregado de organizar uma cruzada contra os turcos. Eventualmente, os supostos conspiradores foram acusados não apenas de querer matar o Papa, mas de serem pagãos que negavam Deus, Cristo e a Igreja.
Os prisioneiros negaram veementemente as acusações, tentando colocar a culpa num dos amigos que tinha conseguido escapar à prisão. Qualquer que seja a explicação – seja a influência de clérigos seniores como Gonzaga, ou a mudança de ideias de Paulo II, ou qualquer outra coisa – Sacchi acabou por ser libertado.
(Sacchi acabaria por se vingar ao escrever uma história sobre os Papas, na qual tinha uma enorme quantidade de coisas nada lisonjeiras a dizer sobre Paulo II.)
Para todos aqueles que acham estranho que figuras que ficaram “de fora” sob o papado de João Paulo II e Bento XVI tenham passado por uma reabilitação com o Papa Francisco – basta pensar nos cardeais Walter Kasper, por exemplo, ou Oscar Rodriguez Maradiaga – Sacchi é uma lembrança permanente de que não há nada de novo sob o sol.
Quanto ao seu livro de receitas, seria considerado a contribuição literária mais importante de Sachhi, mesmo que apenas por causa das luzes que fornece sobre os hábitos alimentares dos italianos na época. Por um lado, ele marca uma fase fascinante na evolução do prato que é, sem dúvida, a contribuição mais amada e mais amplamente imitada da Itália na cultura alimentar global: “pasta” com molho.
Contrariamente à opinião popular, a massa não foi introduzida na Itália por Marco Polo depois das suas viagens à China. Há referências a várias formas de massas, frescas e secas, consumidas pelos italianos já no século IX, bem antes de Polo viver e morrer, o que significa que na época em que Sachhi escreveu o seu livro de receitas, já era uma marca da dieta italiana. Na verdade, o motivo pelo qual o garfo foi adoptado na Itália séculos à frente do resto da Europa é precisamente por haver necessidade de uma maneira fácil de consumir massas cozidas.
Mas o formato que os forasteiros mais associam à culinária italiana, massa com molho de tomate, era desconhecido na sua época, já que o tomate é um produto do Novo Mundo e não seria introduzido na Itália, começando por Nápoles, até ao século XVII.
Normalmente, os pratos de massa de épocas anteriores apresentavam massa fervida em caldo (geralmente caldo de galinha), e não água, servida com queijo ralado, geralmente parmesão. No Decameron de Boccaccio, há uma cena de uma terra imaginária com uma montanha de parmesão ralado com massa fervida em caldo a ser constantemente atirada para as pessoas em êxtase imediatamente abaixo.
Na época de Sacchi, a revolução nas receitas de massa foi impulsionada pelos temperos, que se encontravam a chegar às cidades-estados italianas graças às rotas comerciais marítimas com o Oriente Médio e a Ásia. Uma receita típica inclui pimenta, canela, gengibre, cravo e açafrão, juntamente com açúcar. Teria que ferver o seu maccheroni (o termo usado na época para aquilo a que chamamos hoje de espaguete), ravioli ou vermicelli em caldo, aquecer os temperos, misturar os dois e adicionar o queijo ralado com um pouco de caldo para fornecer liquidez.
Sachhi também regista outros menus para refeições eclesiásticas requintadas da época, incluindo pavão, cabra assada e até mesmo um urso inteiro. É uma janela preciosa para a vida atrás de portas fechadas dos VIPs da Igreja da época.
Por outras palavras, Sacchi era o produto de uma cultura que considerava a fé e a comida como duas faces da mesma moeda – na verdade, uma era impensável sem a outra. Pensando bem, afinal, é praticamente como a Itália de hoje em dia.
Artigo de John L. Allen Jr., publicado no Crux a 13 de Junho de 2021.
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