Arquidiocese de Braga -

4 maio 2021

Vaticano aborda consequências psicológicas da pandemia de Covid

Fotografia Lolostock via Shutterstock

DACS com Crux

O Crux conversou com o homem que coordenou a elaboração do documento “Acompanhar pessoas com sofrimento psicológico no contexto da pandemia de Covid-19: membros de um só corpo, amados por um único amor”, o Monsenhor Bruno Marie Duffé.

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Um dos menos documentados desafios da pandemia de Covid-19 tem sido o impacto dos confinamentos, incertezas e restrições sobre a saúde mental dos milhões de pessoas que tiveram uma experiência de perto com o vírus, seja porque perderam alguém amado, porque estiveram na “primeira linha” ou por serem recém-desempregados.

Nma tentativa de responder a essa questão, o Vaticano publicou um documento intitulado “Acompanhar pessoas com sofrimento psicológico no contexto da pandemia de Covid-19: membros de um só corpo, amados por um único amor”.

Escrito no último mês de Novembro, devido a um atraso nas traduções só foi publicado no início deste ano, no site do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral que, entre outras coisas, coordena o trabalho da Comissão Vaticana Covid-19, convocada pelo Papa Francisco para tentar imaginar o mundo pós-pandemia.

“O sofrimento psicológico causado ou piorado pelas profundas preocupações sobre esta doença desconhecida tem sido pouco considerado”, diz o documento do Vaticano.

“Mais especificamente, a perda de controlo sobre a nossa existência pessoal e a vida que partilhamos com aqueles que amamos tem sido uma fonte de grande preocupação. Quando a experiência médica e os tratamentos se tornam repentinamente inapropriados, ineficazes ou falhados, o medo do desconhecido tem colocado as seguintes questões: o que será de mim? O que será de nós?”.

O documento toca em questões como a ansiedade, a depressão, um aumento de pensamentos suicidas devido à pandemia e a tentação de ceder ao desespero. O documento também aborda diferentes formas de responder a esses desafios, dando particular atenção à dimensão da pessoa humana.

O Crux conversou com o homem que coordenou a elaboração do documento, o Monsenhor Bruno Marie Duffé, secretário do Dicastério do Vaticano chefiado pelo cardeal Peter Turkson.

“Antes do desenvolvimento da psicologia clínica e da psicoterapia, os padres exerciam de alguma forma a função de psicólogos, muitas vezes sem sequer o saberem”, afirmou. “O convite à oração, confissão e à direção espiritual, durante séculos, ofereceu suporte a muitas pessoas. É possível dizer que o diálogo confidencial com um padre tem, hoje e ontem, uma dimensão de cura e libertação. Quando podemos falar e sentir que realmente estamos a ser ouvidos, sentimo-nos melhor”, afirmou.

 

“Encontrar, olhar, ouvir, sorrir, apoiar ou encorajar”

Como surgiu a ideia de escrever sobre saúde mental?

Escutando vários grupos de bispos e actores no ministério social de diferentes países que ouvimos através de videoconferências durante o último ano, promovidas pela Comissão Vaticana Covid-19, entendemos que o sofrimento de muitas pessoas devido à pandemia de Covid-19 tinha uma relação directa com saúde mental. A experiência do confinamento, a disrupção das actividades sociais e relações e, sobretudo, a angústia face a uma doença desconhecida, acompanhada da morte de familiares e amigos, amplificou a fragilidade mental de pessoas sós ou em situação de depressão. Nesta situação, levantam-se questões sobre o sentido da vida e, algumas vezes, a ansiedade amplifica-se ao ponto de chegar ao desejo de morrer, quando essas pessoas se sentem verdadeiramente sozinhas ou sem futuro. A informação que o dia-a-dia nos dá sobre a pandemia, a morte e a dificuldade diante do futuro têm aumentado esse caminho para a desesperança.

 

Como é que foi o processo de escrita e quem esteve envolvido nele?

Decidimos escrever um simples, mas profundo texto, considerando as dimensões mais importantes do fenómeno da pandemia e a missão particular das pessoas que são chamadas a acompanhar aqueles que sofrem psicologicamente. Considerações que têm que ver com a sociologia (considerando os grupos mais frágeis), com a psicologia (pessoas com as suas dimensões mentais, afectivas, relacionais, espirituais), com a espiritualidade e a prática pastoral (missão da comunidade da Igreja e daqueles que assumem um serviço para acolher ou acompanhar pessoas) foram importantes.

 

Muitos dos fiéis pensam nos padres e agentes pastorais como psicólogos. Consideram a possibilidade de inclusão ou aprofundamento desse treino?

Durante cerca de um século, pensávamos que os problemas psicológicos e espirituais poderiam ser resolvidos com produtos químicos, em particular com os “ansiolíticos”. Isso é uma ilusão, já que tais “curas” amplificam a dependência e tornam a pessoa mais frágil. Partilhar a palavra, oferecer um momento à pessoa para que ela possa contar a sua história pessoal, a sua inquietação, o seu desejo: é assim que se passa da angústia a uma nova força moral, da morte à vida. Ainda não sabemos o suficiente sobre os carismas que temos, com a nossa capacidade de encontrar, olhar, ouvir, sorrir, apoiar ou encorajar. A chave para este problema é dupla: devemos manter aberto o espaço e o tempo do encontro, e devemos reabrir o caminho da contemplação ao que nos faz felizes: a Criação de Deus e a ternura de Jesus que permanece sempre “perto” de todos, homens, mulheres, crianças e idosos. Estivemos envolvidos em seis encontros de trabalho – diálogo e reflexão – e em cada encontro cada membro do grupo escreveu e enriqueceu cada um dos capítulos. Tem sido uma experiência de diálogo, um “logos”, que se construímos em conjunto, ouvindo-nos uns aos outros.

 

Em que é que a Igreja e a experiência de fé em geral podem contribuir para uma pessoa que sofre de transtornos mentais?

Antes do desenvolvimento da psicologia clínica e da psicoterapia, os padres exerciam de alguma forma a função de psicólogos, muitas vezes sem sequer o saberem. O convite à oração, confissão e à direção espiritual, durante séculos, ofereceu suporte a muitas pessoas. É possível dizer que o diálogo confidencial com um padre tem, hoje e ontem, uma dimensão de cura e libertação. Quando podemos falar e sentir que realmente estamos a ser ouvidos, sentimo-nos melhor. Com a diminuição desse tipo de acompanhamento espiritual, pode sentir-se mais a solidão e o peso das questões existenciais: de onde é que venho? Para onde vou? Por que tenho que sofrer? Paradoxalmente, a secularização ampliou os temas da condição humana, do início e do fim da vida, da possibilidade de amar, de dar amor e de ser amado… O tema de Deus e do outro… Parece evidente que não é possível assumir-se a responsabilidade de agente pastoral sem uma boa formação neste tipo de conhecimento. É a primeira condição para poder ouvir, analisar, aconselhar e acompanhar (sem se deixar levar pela dor interior do outro).

 

O que é que a Igreja pode oferecer de diferente?

A Igreja, em primeiro lugar, pode oferecer uma presença e uma compreensão. Não tem solução para uma angústia ou para um sofrimento interior e secreto. Com a graça de Deus Pai e a compreensão de Jesus-Irmão, os membros da Igreja, com os talentos que cada pessoa possui, podem estar presentes, junto das pessoas, oferecendo um espaço de escuta, consideração, respeito, amor… Sempre com a distância e a atenção necessárias, como fez o Bom Samaritano no Evangelho e como nos lembra a última encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. Saber que uma pessoa está próxima pode mudar a vida de uma pessoa solitária ou deprimida. Isto deve estar ligado à complementaridade entre médicos – psicoterapeutas, psiquiatras... – e amigos, familiares ou membros de uma comunidade cristã. O médico tem uma compreensão que advém do seu conhecimento e experiência: o amigo ou pastor tem uma consideração que inspira o coração. “Psique” e “Coração” são duas dimensões do mesmo ser humano, o ser humano que sofre, mas necessita de consideração e ternura. A situação complexa da pandemia mostra claramente que somos seres com um corpo frágil, uma “mente” muito sensível, um coração que espera o outro e um “suspiro” que precisa de confiança. Confiança significa acreditar consigo si mesmo.

 

Entrevista de Inés San Martín, publicada no Crux a 1 de Maio de 2021.