Arquidiocese de Braga -

23 março 2021

Esther Duflo: “Existe uma ideia errada generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram"

Fotografia © Bryce Vickmark

DACS

Prémio Nobel de Ciências Económicas, Esther Duflo concedeu uma entrevista a Hugo Alconada Mon (La Nacion) sobre as consequências da pandemia de Covid-19.

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“Há tanta coisa que não sabemos”, diz Esther Duflo, e a sua frase desconcerta. Desconcerta porque Duflo, com 48 anos, já ganhou todos os prémios possíveis que poderiam ser ganhos no campo da economia dedicando-se a isso mesmo: a desentranhar o que não sabemos e a repensar aquilo que acreditávamos saber. Isso explica o título do livro que publicou, em 2011, com o seu marido Abhijit Banerjee, que revolucionou as políticas públicas para o desenvolvimento e os levou a receber o Prémio Nobel de Ciências Económicas, juntamente com Michael Kremer, oito anos depois. O título desse livro? “Repensar de modo radical a luta contra a pobreza global”.

Agora, com outro livro – “Boa economia para tempos difíceis” –, a economista francesa, que trabalha no Massachusetts Institute of Technology (MIT) desde 1999, considera que a pandemia de Covid-19 obrigou muitos a ver os problemas sociais que não conseguiam – ou não desejavam – ver. A questão, afirmou, é se agora irá haver alguma acção no sentido de os resolver.

Por isso, convida-nos novamente a repensarmos o que acreditamos saber. Um exemplo? “Existe uma ideia errada generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram e que não devemos ser muito generosos com eles porque ficariam preguiçosos”, disse à La Nacion, a partir de Boston, onde vive com Abhijit e os seus dois filhos pequenos, e de onde dirige o Jameel Poverty Action Lab. Porque esse é outro dos traços marcantes de Duflo: pés no chão, mangas arregaçadas e ideias aplicadas.

Duflo acredita que a pandemia pode ser uma oportunidade. Não é um clichê. Para os políticos, explica, para finalmente dizerem com franqueza aos seus eleitores o que acontece, o que sabem e o que não sabem. E, a partir de uma perspectiva mais ampla, para nos olharmos ao espelho: “tomara que esta crise global provocada pela Covid-19 nos obrigue a questionar sobre o que realmente importa e a pensar o que isto implica para as políticas que devemos adoptar”.

 

Esta pandemia mudou ou reforçou, de alguma maneira, os seus pontos de vista sobre a imigração, a desigualdade, a globalização, a disrupção tecnológica, o crescimento e a mudança climática?

A pandemia actuou um pouco como reveladora: muitas das tensões que já estavam presentes na nossa sociedade ficaram mais visíveis, muitos dos problemas aumentaram, como se tivessem sido colocados num microscópio. Portanto, na maioria das vezes, lamentavelmente, as nossas opiniões não mudaram. Antes pelo contrário, os problemas que tínhamos identificado tornaram-se ainda mais urgentes. O que esperamos é que, pelo facto de estes problemas terem sido revelados pela pandemia, também se tornem mais prioritários para todos. O mais importante é que agora temos diante de nós um claro exemplo de que quando os cientistas ou Bill Gates nos advertem que um desastre está logo ao virar da esquina, algumas vezes simplesmente o desastre acontece... A nossa esperança, já que tendemos a ver o copo meio cheio, é que iremos recordar esta lição e começaremos a lutar seriamente contra a mudança climática.

 

Os seus comentários sobre a expansão do comércio global ressoam fortemente ao vermos o que está a acontecer agora devido à Covid-19: “aqueles que tiveram a sorte de estar no lugar certo, no momento certo, com as habilidades adequadas ou as ideias correctas, ficaram ricos, às vezes fabulosamente. Para os restantes, foram perdidos postos de trabalho que não foram substituídos por outros”. Como é que a sociedade pode ajudar todas essas pessoas que os mercados – e, agora, esta pandemia – deixaram para trás?

A pandemia exacerbou as desigualdades, pelo menos dentro dos países, porque as pessoas com trabalhos que podem ser desenvolvidos com um computador recuperaram muito rápido, enquanto aqueles que dependiam de interacções directas – como os trabalhadores de restaurantes, os comerciantes ou aqueles que trabalhavam em fábricas – perderam tanto as suas vidas, como os seus meios de subsistência. Todos esses sectores não se recuperaram tão rápido como os outros. O único aspecto positivo, se é que há um, é que o impacto inicial da pandemia foi tão generalizado que muitas pessoas que provavelmente nunca pensaram que alguma vez precisariam de ajuda, realmente necessitaram dela e, pelo menos nos países ricos, obtiveram-na. 
 

“Os governos passaram muito tempo a assumir que o crescimento económico é a única coisa que deveria preocupá-los. Isto levou a decisões políticas desastrosas com a esperança de regressarmos ao caminho do crescimento. Mas, o que realmente queremos é felicidade! E o crescimento, ou até a riqueza do país, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB), é só uma dimensão!”


Existe uma ideia errada generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram, e também de que não devemos ser muito generosos com eles porque ficariam preguiçosos. Até durante a pandemia o programa de ajuda foi criticado por correr o risco de dissuadir as pessoas a voltarem ao trabalho, ainda que muitos estudos demonstrassem o contrário. Mas, em geral, acredito que muitas pessoas devem ter aprendido desta experiência que a segurança social não é apenas caridade para aqueles que a merecem menos do que elas: é essencial para enfrentar os riscos que todos assumimos. Isto pode fazer com que as pessoas estejam mais dispostas a perceber que quando alguém perde o seu trabalho devido ao comércio ou à automação, não é mais responsável do que elas próprias foram ao perder o seu emprego devido à Covid-19. E todos merecem essa segurança social num plano de igualdade.

 

“Os ricos podem eventualmente ver que lhes convém defender uma mudança radical para a distribuição real da prosperidade”. Pode explicar? O que propõe?

Tudo o que aconteceu nos Estados Unidos, depois das eleições presidenciais de Novembro até ao assalto ao Capitólio, no dia 6 de Janeiro, dever ter causado um grande susto em muitas pessoas ricas. E, nesse sentido, vale a pena frisar que os desordeiros que participaram desse assalto sentiam que defendiam principalmente Donald Trump contra o estabelecimento do Partido Republicano tradicional, não tanto contra os democratas. A sensação de uma traição é mais profunda que a crença errada de que lhes “roubaram” a eleição. Alguns dias antes, quando o líder do Senado, o republicano Mitch McConnell, se havia recusado a votar a favor de um pagamento único maior à população, algumas pessoas escreveram na sua porta “McConnell mata os pobres”. A crise actual do Partido Republicano não se deve só à personalidade de Trump, ocorre também porque há uma ruptura entre uma base partidária que exige que as promessas populistas que lhes anunciaram sejam cumpridas e uma elite que não está disposta a isso. Durante um tempo, essa elite lidou com a tensão oferecendo outras coisas que as pessoas também queriam, com uma retórica nacionalista e anti-imigrante. Mas isto só durará até certo ponto. No entanto, uma tendência animadora na política dos Estados Unidos é que existe um grande apoio popular às políticas económicas que são boas para as pessoas. Na Flórida, por exemplo, 60% dos eleitores votaram pelo aumento do salário mínimo. Enquanto isso, as associações empresariais e os líderes republicanos lutam contra esse aumento. Pode ser que essa iniciativa avance, ou não, mas pelo menos as linhas de batalha agora são traçadas em torno do interesse económico real – com os trabalhadores contra as empresas –, o que é muito mais sensato do que as linhas de batalha traçadas em torno de questões de identidade. E, com tal nível de apoio para tais políticas, pelo menos um segmento dos ricos entende que deve apoiar as pessoas para preservar a paz social e a capacidade de continuar a fazer negócios. Nunca haverá um consenso total, claro, mas é possível alcançar o suficiente para avançar e restabelecer uma certa confiança de que o governo está aí para ajudar os pobres.

 

Como é que as ideias expressas no seu livro mais recente podem ajudar-nos a transpor a barreira da discórdia e da desconfiança que nos divide, não só nos Estados Unidos, mas também na Argentina e em tantos outros países, hoje em dia? Pode dar-nos um exemplo?

A ideia central do livro que pode ajudar neste sentido é a de que devemos resistir a reduzir as pessoas à opinião que expressam em determinado momento, por mais violenta ou desagradável que seja essa opinião, ou o tom em que a expressam. Durante muito tempo, os economistas acreditaram que as preferências não devem ser discutidas. São o que são e não podemos mudá-las, só temos que oferecer às pessoas os incentivos adequados para que se comportem de uma determinada maneira, dadas as suas preferências. Isto tornaria muito difícil convencer as pessoas, digamos, de que todas as raças são iguais. Mas, de facto, o que a psicologia e a sociologia nos dizem é que as preferências das pessoas estão longe de estarem inscritas numa pedra e que dependem do contexto de uma maneira muito subtil. Não deveríamos colocar as pessoas na prisão das suas próprias preferências.

 

“Existe uma ideia errada generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram, e também de que não devemos ser muito generosos com eles porque ficariam preguiçosos. Até durante a pandemia o programa de ajuda foi criticado por correr o risco de dissuadir as pessoas a voltarem ao trabalho, ainda que muitos estudos demonstrassem o contrário. Mas, em geral, acredito que muitas pessoas devem ter aprendido desta experiência que a segurança social não é apenas caridade para aqueles que a merecem menos do que elas: é essencial para enfrentar os riscos que todos assumimos. Isto pode fazer com que as pessoas estejam mais dispostas a perceber que quando alguém perde o seu trabalho devido ao comércio ou à automação, não é mais responsável do que elas próprias foram ao perder o seu emprego devido à Covid-19. E todos merecem essa segurança social num plano de igualdade.”

 

Se fosse assessora de um presidente, o que lhe aconselharia a fazer ou deixar de fazer? Além de, como a Esther já afirmou noutras entrevistas, jamais seguir os conselhos dos economistas!

(Risos). Provavelmente, aconselharia a que facilitasse o maior espaço possível para experimentar políticas públicas e deixar um lugar para “falhar rápido e avançar”. Porque há tanta coisa que não sabemos... E, no entanto, supõe-se que os políticos devem ter a solução para tudo, precisam de projectar tudo com perfeição, como se soubessem tudo e, se as suas decisões não saem conforme o planeado, são eles os culpados.

 

A pandemia mostrou esta falência, de maneira brutal, em muitos países...

Isto ficou claro com a Covid-19, sim. O vírus continua a evoluir e apresenta-nos novos desafios. Os epidemiologistas fazem previsões que acabam por não ser correctas. No entanto, os líderes precisam de tomar decisões a todo o momento. Mas, em vez de abraçarem a incerteza e dizerem que estão a dar o melhor de si, mesmo podendo ser necessária uma mudança de rumo, procuram projectar uma confiança que não podem ter. Agora é-nos dito, por exemplo, que o próprio presidente francês lê artigos científicos e que já não precisa de se apoiar no seu próprio conselho científico. O resultado é que o público francês agora não confia nem no presidente, nem no conselho científico... Claro, isto é um pouco mais extremo agora por causa da pandemia, mas em tempos normais deveria acontecer o mesmo: os políticos deveriam ser mais transparentes sobre o que sabem, o que não sabem, o que estão a testar e o que pode falhar ou ter êxito.

 

Quais são as perguntas que, há muito tempo, deveríamos ter feito e não fizemos? Quais são as perguntas que deveríamos fazer agora?

Acredito que a pergunta central que devemos fazer agora é esta: “o que faremos para proteger o nosso clima e o nosso planeta, antes que seja demasiado tarde?”. Temos que mudar a nossa forma de consumir e de nos comportarmos. E esta primeira pergunta conduz a outras: o que nos importa? Interessa-nos realmente consumir tanto, cada vez mais e mais coisas? Interessa-nos ter carros cada vez maiores? Gerar tanta calefacção e ar condicionado, interessa-nos assim tanto que tenhamos frio no Verão e calor no Inverno? Os governos passaram muito tempo a assumir que o crescimento económico é a única coisa que deveria preocupá-los. Isto levou a decisões políticas desastrosas com a esperança de regressarmos ao caminho do crescimento. Mas, o que realmente queremos é felicidade! E o crescimento, ou até a riqueza do país, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB), é só uma dimensão! Como seres humanos, temos muitas outras preocupações, como a saúde, as relações sociais que estabelecemos com outras pessoas, um sentido de propósito... Tomara que esta crise global provocada pela Covid-19 nos obrigue a questionar-nos sobre o que importa e a pensar o que implica isto para as políticas que devemos adoptar.

 

Entrevista de Hugo Alconada Mon (La Nacion), publicada a 13 de Março de 2021.