Arquidiocese de Braga -

12 abril 2017

"O papel da realização dos direitos das crianças convoca-nos a todos"

Fotografia Filipa Correia

Flávia Barbosa | DACS

Entrevista a Madalena Marçal Grilo, Directora-Executiva do Comité Português para a UNICEF.

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Pode falar-nos um pouco do seu percurso até chegar ao cargo que ocupa na UNICEF?

Eu acho que o meu percurso não tem interesse “nenhum” (risos). Penso que o interesse que pode haver naquilo que eu possa dizer é sempre à luz de uma lente da UNICEF. Acho que sou uma pessoa perfeitamente normal: depois de ter feito a Universidade – estudei Línguas – tinha os meus filhos muito pequenos e decidi não trabalhar. Tinha quatro filhos e preferi não trabalhar com um horário fixo. Fiz trabalhos de voluntariado e comecei na UNICEF como voluntária, onde trabalhei nove anos nesse regime. Comecei a trabalhar só da parte da tarde, mas depois acabei por trabalhar o dia todo. Assumi desde o início – porque a presidente de então assim o entendeu – um cargo de direcção, mas, ao mesmo tempo, o cargo de Comunicação e Relações Exteriores, ou seja, comecei como porta-voz da UNICEF nessa altura. No final desses nove anos passei a integrar o quadro da UNICEF em Portugal, continuando também com o cargo da Comunicação e Relações Exteriores. Mais tarde, quando foi criado um posto de Director-Executivo, passou a haver uma separação entre o Conselho de Administração e a parte executiva. Foi em 2001 e nessa altura fui nomeada Directora-Executiva. Qualquer dia vou embora (risos), não há-de faltar muito para isso. Mas como dizia, acho que realmente o que interessa que eu possa transmitir é em termos da UNICEF e uma visão UNICEF.

 

Então a UNICEF é uma espécie de segunda pele?

Ao longo de todos estes anos, que são trinta – já é muito tempo! – diria que a UNICEF é quase como uma segunda pele porque fui para um lugar que tinha muito a ver com comunicação, lia muita coisa e fui sempre acompanhando muito, mas também tive a oportunidade de ir a alguns países visitar o trabalho da UNICEF no terreno, mais numa determinada altura do que agora. E não há nada como ver, falar com as pessoas... é bem diferente de ler os relatórios! Eles dão-nos suportes extraordinários de comunicação, vídeos, imagens, testemunhos... temos muitos relatórios. Mas falar com as pessoas e ver o trabalho que é feito no terreno tem ainda um impacto muito maior porque permite sentir o que é o trabalho. Nessas viagens e nesse contacto que tive, apercebi-me da importância do trabalho que é feito diariamente – anonimamente a maior parte das vezes – no terreno. Infelizmente, este trabalho que é feito anonimamente não tem a visibilidade que deveria ter.

 

 

© UNICEF/Souleiman

No entanto a Agência está presente um pouco por todo o mundo...

A UNICEF tem os escritórios de terreno nos países onde actua – mais de 150 –, tem a sede em Nova Iorque e nos países industrializados, como é o caso do nosso, tem a figura dos Comités Nacionais para a UNICEF. São as organizações nacionais, de direito nacional, que representam a UNICEF nos países industrializados. Temos todos em comum a defesa dos direitos das crianças e a promoção dos seus direitos, tanto nos países em desenvolvimento como nos países industrializados. Em termos de áreas de actuação, temos nos países em desenvolvimento programas de cooperação a médio e longo prazo. A UNICEF trabalha a pedido dos governos e estes programas de cooperação visam criar e melhorar as condições de vida das crianças de forma duradoura. E têm, normalmente, componentes que vão desde cuidados de saúde e nutrição à educação. No que diz respeito à sobrevivência, desenvolvimento e protecção das crianças, estes são componentes da maioria dos programas.

 

Portanto, há um trabalho diário mas que ganha mais visibilidade em alturas catastróficas?

A UNICEF tornou-se ou é mais conhecida pelas intervenções que tem em casos de emergência. Às vezes vemos nas notícias alguns campos de refugiados ou deslocados onde se vê quase sempre uma tenda da UNICEF... Mas é muito mais do que isso! O facto de a UNICEF estar no terreno na maior parte dos países faz com que quando acontece uma catástrofe, esteja, se calhar, mais bem posicionada para responder rapidamente. Uma das características que salientamos no trabalho da UNICEF é que ela está antes, durante e depois. Ou seja, normalmente já lá está no terreno, está durante uma situação de emergência e não vem embora a seguir, porque a missão dela é essa mesmo, ajudar a reconstruir, mais e melhor. Infelizmente, nos últimos tempos há um conjunto de emergências que se prolongam no tempo e que são bem visíveis, como a guerra na Síria, uma guerra no Iémen que acabou na semana passada... e uma série de conflitos por esse mundo fora. O número de crianças desenraizadas, deslocadas, refugiadas ou migrantes é hoje de 50 milhões, um número absolutamente astronómico! Cerca de 28 milhões dessas crianças tiveram que sair das suas casas por causa de conflitos, o que é também um número avassalador!... Estes números são muito importantes para darem a dimensão e mostrarem qual é a escala do problema que estamos a falar, mas nunca podemos esquecer que por trás de cada número está uma criança. E é uma criança individual, não estamos a falar de números, estamos a falar de pessoas, estamos a falar de crianças que nasceram com os seus direitos, que têm uma vida, têm uma família, têm sonhos... É essa a nossa preocupação!

 

Há esperança para estas crianças, com tantas marcas e traumas? 

Para muitas, há. Acreditamos nessa esperança. Não vai ser para todas, isso sabemos que não. Há hoje situações de risco em que as crianças têm a vida em perigo, mesmo em perigo! Vejamos a situação de crise alimentar em países como o Sudão do Sul, a Somália, o Iémen e a Nigéria, onde há quase um milhão e meio de crianças em perigo de vir a... morrer de fome!!! Estão num estado de subnutrição muitíssimo grave! Estes países têm uma conjugação de factores – sejam eles a guerra, a seca, as deslocações – terrível que vem pôr em risco a vida de muitas crianças. Muitas podem não resistir na medida em que o seu estado de desnutrição é tão acentuado, tão grave... a não ser que a ajuda chegue a tempo! Aí há esperança e é exactamente essa esperança que a UNICEF diz e acredita que é possível. Há esperança se chegarem àquelas que mais precisam, se a ajuda humanitária puder chegar sem restrições – muitas vezes estes países em guerra impedem a chegada da ajuda humanitária – e se for rápida, se for urgente. E de que é que isto depende? Depende dos meios, da possibilidade de as equipas humanitárias que estão no terreno se moverem e poderem chegar a quem mais precisa. Se estas crianças depois destes traumas todos também recuperam? Essa também tem sido uma área na qual a UNICEF tem vindo a trabalhar mais. As crianças vítimas de conflitos e de situações traumatizantes precisam de apoio psicológico. Esse tem sido um trabalho que a UNICEF também tem estado a fazer, juntamente com muitos parceiros. A UNICEF não faz nada sozinha: trabalha com o governo mas também com imensas organizações no terreno, com organizações locais, internacionais, com comunidades, e só isso é que lhe permite ter uma presença tão diversificada, porque por exemplo a UNICEF é das poucas que está a trabalhar no interior da Síria e fá-lo justamente através de parceiros que estão no terreno, senão seria ainda mais difícil.

© UNICEF/Al-Issa

 

Globalmente não podemos falar de uma situação “desesperante”...

A UNICEF fez em Dezembro 70 anos e fez uma espécie de balanço. Houve efectivamente melhorias muito significativas e há dados que demonstram perfeitamente essas melhorias, como a taxa de mortalidade infantil e de menores de cinco anos que nas últimas décadas – e estou a falar sobretudo nas últimas duas décadas e meia – quase diminuiu para metade. Lembro-me muito bem que quando entrei para a UNICEF a taxa de mortalidade infantil anual era de 12 milhões, 12 milhões e meio de crianças. O ano passado a mortalidade desceu para 5,9 milhões. Claro que há um progresso importante. No entanto, não podemos dizer que é um número incrível. Portanto, enquanto estes números existirem, ninguém pode ficar muito satisfeito. Mas eles mostram-nos que quando há vontade política, quando há conjugação de esforços é possível melhorar, não é? Esse é um sinal de esperança. Já falámos do trabalho no terreno, mas depois há todo o outro que é feito pela UNICEF, um trabalho de “lobby”, um trabalho de sensibilização. Quando eu digo “lobby”, falo de pressão junto de responsáveis políticos para que cumpram, para que façam os possíveis para cumprir a realização dos direitos das crianças. A Convenção sobre os Direitos da Criança, que é o tratado de Direitos Humanos que reúne os direitos das crianças e que é o documento de direito internacional a que mais países aderiram rapidamente – neste momento tem a ratificação praticamente universal – é o guia de acção da UNICEF, a “Bíblia”, se me é permitido fazer o paralelismo (risos)! E é um instrumento de pressão, se assim quisermos chamar. Podemos dizer: “os senhores ratificaram esta decisão, comprometeram-se, há aqui compromissos internacionais a  respeitar para as crianças”. Nós acreditamos, ou eu acredito, que é possível mudar, mas para isso é preciso um esforço grande por parte de todos os governos e da sociedade em geral. É evidente que são os estados quem tem a principal obrigação de apoiar as famílias, mas as organizações e a sociedade civil também têm um papel a desempenhar. (...) Há um papel que é a realização dos direitos das crianças e esse convoca-nos a todos. Há quem tenha obrigações primordiais, mas todos temos um papel a desempenhar nesta luta.

“(...) Nós vivemos num mundo de desigualdades, de interesses que comandam o mundo, da primazia do dinheiro, do poder e do esquecimento que existe muitas vezes das pessoas, da marginalização da pessoa humana. No fundo acho que a visão do Papa está de acordo com tudo aquilo que é a defesa dos direitos humanos.”

 

O Papa Francisco falou por várias vezes em economia de exclusão. Como é que crianças e adultos podem contrariar este fenómeno?

 Nós não vivemos isolados, vivemos integrados numa comunidade, numa sociedade, maior ou menor. A mudança começa em nós, do modo como olhamos para a criança. E aí a Convenção sobre os Direitos da Criança trouxe alguns aspectos inovadores: a criança é hoje mais encarada – ainda não na totalidade, é importante frisar isto – como um sujeito de direitos e não apenas como um adulto em formação. Ela tem direitos enquanto tal, não é um ser passivo, apenas receptor de ajuda. Pode também participar na medida da sua evolução, mas tem potencial e capacidade para participar nas decisões que afectam a sua vida, sobretudo tem uma palavra a dizer nessas circunstâncias. Sabemos bem que em gerações anteriores as crianças eram muito menos participativas na vida da família, não estavam tão presentes. Hoje estão mais. Mas se me perguntar se está tudo resolvido... não, não está. Porque a participação das crianças é mais do que isso, é ouvi-las, não necessariamente fazer tudo aquilo que elas dizem, mas ouvir e fazer muitas das coisas que elas dizem, se calhar! (risos). É dar-lhes a conhecer os seus direitos, mas também o que implica esses direitos, o que implica a sua realização e as responsabilidades que têm enquanto cidadãos. A questão da participação é um aspecto importante, não é o único, mas é importante para um exercício de cidadania a que aspiramos.

 

Uma cidadania activa pode implicar mais inclusão?

Há um aspecto muito importante na nossa tarefa que é ter a noção do que é a realidade nesta aldeia global em que vivemos, ter noção da interdisciplinaridade. Ou seja, aquilo que acontece num sítio diferente do nosso não é completamente “estranho”: ninguém está imune àquilo que acontece, às crises que acontecem mundo fora. No fundo, elas acabam por afectar toda a gente. Por exemplo, a questão dos refugiados é uma questão preocupante na qual a UNICEF está fortemente empenhada. Mas temos que pensar que esta questão tem causas. Por que é que as pessoas procuram outros locais mais seguros onde possam ter uma vida melhor? Muitas delas vêm fugidas de guerras para as quais não existe uma solução e, por isso, como ouvia o Engenheiro Guterres dizer, e julgo que ouvi o Papa dizer o mesmo, é necessário atacar as causas. É necessário atacar as causas da guerra, da pobreza, do desemprego, que levam muitas pessoas a abandonar as suas terras e partir em busca de uma situação melhor! Penso que o Papa Francisco tem tido uma visão extraordinariamente humanista destas causas, dos mais pobres, dos desfavorecidos, das desigualdades... Porque nós vivemos num mundo de desigualdades, de interesses que comandam o mundo, da primazia do dinheiro, do poder e do esquecimento que existe muitas vezes das pessoas, da marginalização da pessoa humana. No fundo acho que a visão do Papa está de acordo com tudo aquilo que é a defesa dos direitos humanos.

 

© UNICEF

Portugal é um país civilizado. A criança é aqui um sujeito pleno de direitos?

 Acho que em Portugal a situação das crianças também evoluiu muito ao longo dos anos. Hoje está muito melhor do que estava há umas décadas em vários aspectos: saúde, educação, apoios, inclusivamente na integração. Mas há ainda muitas situações que não estão cobertas. A pobreza infantil é uma questão que nos preocupa muito: esta crise e as medidas de austeridade vieram agravar as situações de pobreza, o desemprego, o acesso a apoios sociais e tudo isto se reflecte de uma maneira mais gravosa para as crianças. Afecta-as no seu dia-a-dia e também diminui as oportunidades que elas têm de aceder a bens e serviços que podem contribuir para o seu desenvolvimento, valorização e futuro. São consequências com efeito a longo prazo....

 

Há uma maior participação das crianças em termos de cidadania e em casa, no seio da família. Ao mesmo tempo, os pais passam cada vez menos tempo com os filhos. Não estamos a remar em dois sentidos?

É verdade que muitas vezes os pais têm que ter muitas horas de trabalho para poderem suprir as necessidades da família. Isto leva-os a ter menos tempo para os filhos, claro. Penso que é importante que as crianças tenham o tempo dos pais, tempo de qualidade, sobretudo. O que muitas vezes não acontece, porque até podemos estar todos em casa, mas se estivermos agarrados a um destes objectos como um tablet, telemóvel ou consola, não há muita qualidade. E já que estamos a falar destes objectos, acho que um desafio muito importante que se coloca às crianças de hoje em dia, e que é preocupante, é o aumento do cyberbullying e de todos os perigos que a internet – a internet em geral, as redes sociais, etc. – também representa para as crianças. É óbvio que tem imensas vantagens, que abriu o mundo de uma maneira, incrível, mesmo em termos de acesso à informação e muito mais... Mas há uma série de perigos, nomeadamente em termos de protecção e de exposição, que as crianças não têm ideia do que podem causar. É muito importante que os pais também estejam atentos. Por isso é que dizia que estar em casa também é importante. Não é para policiar, mas é importante que os pais também percebam e que alertem os filhos para alguns dos perigos que possam resultar numa utilização excessiva ou às vezes abusiva da internet.

“O nosso mundo é cada vez mais pequeno, cada vez mais global, não podemos desligar-nos daquilo que acontece longe porque tudo está interligado.”

Sem darmos por ela, falta-nos um pouco de literacia digital...

De literacia e não só. Os miúdos começaram a ter uma grande exposição e a comunicar pela internet e há casos que conhecemos de abusos que levam a situações extremas! Portanto é importante alertá-los para alguns procedimentos nesta área que está a evoluir tão, tão rapidamente que é importante que se olhe para ela seriamente e que não seja descurada. É uma área nova para muita gente e percebo que muitos dos pais não estejam tão à vontade nela. As crianças de hoje em dia parece já têm uma agilidade muito especial para lidar com estes instrumentos todos, mas é importante estar atento, porque vemos que há algumas que se expõem demasiado com fotografias, com diálogos com pessoas que não conhecem... Até porque há todo um anonimato por trás destas máquinas, não é? E há quem se aproveite dessas circunstâncias.

 

É mãe de quatro filhos. Que conselhos daria aos pais de hoje?

(risos). Eu acho que já tenho dado muitos (risos)! Tenho filhos, tenho netos e quer dizer... é uma pergunta difícil, nem sei bem o que responder (risos). Acho que a infância e as crianças – e quando falamos das crianças falamos dos 0 aos 18 – acho que é muito importante o tempo e atenção que se lhes dá, aos filhos. Quando falamos em direitos das crianças já me têm perguntado: “O que é isso dos direitos das crianças? Significa que temos que fazer tudo o que elas querem?”. Não, claro que não, às vezes as crianças precisam de ouvir um “não”, aliás estão mesmo à espera de ouvir um “não”! É bom que elas comecem a perceber que têm direitos, que possam reivindica-los, mas também que esses direitos terminam quando invadem os direitos dos outros. Também devem saber que gradualmente também vão tendo responsabilidades enquanto cidadãos do mundo que é a sua comunidade e a comunidade global a que pertencemos. Acho que é muito importante hoje em dia que os miúdos olhem para o mundo porque as várias situações que referi acontecem em todo o lado – e temos conhecimento delas no momento porque temos um alerta no telemóvel, temos uma aplicação que nos dá a última notícia, sabemos o que se está a passar – são muito efémeras e passam muito de repente. É bom que se reflicta um bocadinho sobre isso! Há questões que todos nós podemos contribuir para elas! Por exemplo, as alterações climáticas: constituem um fenómeno que está a acontecer e para o qual todos nós podemos contribuir. Podemos ter consciência de que a situação dos bens de que dispomos, como a água ou o ar, pode melhorar com o nosso comportamento. Até porque as alterações climáticas também estão na origem da deslocação de milhões de pessoas! Neste aspecto acho que todos nós podemos contribuir para que as nossas crianças tenham tudo aquilo que precisam em termos de necessidades, todas as suas necessidades básicas. Mas é preciso abrir-lhes o horizonte e fazê-las perceber que não vivem sozinhas no mundo. O nosso mundo é cada vez mais pequeno, cada vez mais global, não podemos desligar-nos daquilo que acontece longe porque tudo está interligado.

 

 

 


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