Arquidiocese de Braga -

9 março 2017

A castidade nas relações humanas

Fotografia DR

Texto adaptado da tradução de Moisés Sbardelotto

Artigo escrito por Enzo Bianchi, Teólogo e Prior do Mosteiro de Bose.

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Castidade é uma palavra quase sempre incompreendida ou, melhor, desconhecida e escarnecida, especialmente porque é confundida com a abstinência sexual, com o celibato. A etimologia sugere-nos que é casto (castus) aquele que rejeita o incesto (in-castus). O incesto ocorre todas as vezes em que não se vive a distância e não se respeita a alteridade, que não é só diferença. Não é casto aquele que busca a fusão, o apego, a posse: sinal de tal busca é a agressividade que, nestes casos, facilmente se acende e se manifesta.

A sexualidade – estou mais do que nunca convencido disso depois de uma vida vivida observando-a, contemplando-a, vivendo-a na paz e na fragilidade – está no espaço do dom, porque requer dar e receber, e sempre se coloca na relação entre dois sujeitos. A sexualidade não se reduz à genitalidade, e, portanto, a capacidade de dom e de acolhimento é mais ampla do que aquela exercida na genitalidade: de facto, envolve a pessoa inteira e as suas relações.
Por isso, a sexualidade é algo de bom e bonito, mas o seu uso pode ser inteligente ou estúpido, amante ou violento, ligado ao amor ou simplesmente à pulsão. A sexualidade leva-nos à relação com o outro, mas depende de nós procurar, nessa relação, o encontro ou a posse, a sinfonia ou a prepotência, o intercâmbio e a partilha ou o narcisístico possuir do outro.
Poderíamos dizer que a castidade é a arte de nunca tratar o outro como um objecto, porque, neste caso, ele é “consumido” e é destruído. Arte difícil e fatigante, que requer tempo: não nascemos castos, mas, pelo contrário – é preciso dizer claramente –, nascemos incestuosos, e o exercício de separação e de distinção leva-nos a uma subjectividade verdadeira e autónoma. A castidade confere às relações humanas uma transparência que permite que as pessoas se reconheçam no respeito do seu ser mais íntimo.

Pense-se no encontro sexual dos corpos na sua nudez e na intimidade que daí deriva. Quando os corpos em nudez se encontram e se entrelaçam, acende-se um conhecimento recíproco que não é comparável àquele que até mesmo os amigos mais íntimos podem ter um do outro. Compartilhar o corpo, compartilhar a respiração, compartilhar o leito cria uma união que é “conhecimento único”, é – ousaria dizer, citando João Paulo II – “liturgia dos corpos”, é conhecimento de uma profundidade única.

Quando se toca um corpo, não se toca qualquer coisa, mas uma pessoa, que não é um objecto de prazer, que não pode ser consumida, mas que é possibilidade de comunhão autêntica. Sem essa comunhão, não é possível a castidade, mas apenas a obediência à pulsão, ao ardor, à posse. Escrevia Rainer Maria Rilke: “Não há nada de mais árduo do que amar: é um trabalho, um trabalho diário... O amor é difícil e não está ao alcance de todos”.

O acto sexual, realizado nos tempos e nos modos que os amantes sabem discernir como belos, bons e “justos”, é conhecimento e não se deve ter medo de afirmar que precisamente o sumo prazer do acto sexual incendeia tal conhecimento.

Mas não é fácil distinguir esse sumo prazer do encontro dos corpos, dos corações, das inteligências, da pulsão. Sim, a pulsão sozinha, com a sua prepotência, pode criar o inferno, mas ela habita-nos e, se não fosse assim, não seríamos naturalmente capazes de nos dar e de nos acolher. A pulsão sozinha pode até levar a uma união dos corpos que só conhece o instante fugaz e a uma excitação dos sentidos que conhece o envelhecimento precoce dos próprios sentidos. Não é também por isso que, muitas vezes, as histórias de amor, mesmo que seladas publicamente, conhecem o fim e, portanto, o fracasso do amor?

O amor entre duas pessoas é um longo caminho que só a misericórdia de Deus pode fazer com que seja lido como um caminho possível sem interrupções: por parte dos amantes, há sempre um abrir mão, um não ser adequado ao outro, uma incapacidade de ser sinfónico. O amor deve vencer sempre, a cada dia, sobre todas as forças que são contrárias a ele por obedecerem apenas à pulsão, a qual não quer o bem do outro, mesmo que autorize a dizer que se quer bem ao outro.

Diante de outro sujeito, quando não sabemos estar com respeito, como que diante de um mistério, de uma transcendência, quando não somos capazes de nos inclinar diante do outro e de fazer isso por amor, quando não percebemos o segredo do outro, que foge ao nosso alcance, então não somos capazes de castidade.

Eis a dificuldade da castidade, quase impossível, não vivível, poderia dizer-se; Jesus, aliás, advertiu-nos: “Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (Mateus 5, 28). Olhar para uma mulher para desejá-la não é vê-la como mulher, mas é reduzi-la a um objecto, portanto, não perceber nela a pessoa “outra”; significa passar ao lado de uma possível relação autêntica, para percorrer outras vias que não levam à comunhão.

Mas, justamente colocando-nos diante dessa exigência, compreendemos as nossas fragilidades, as nossas incapacidades, e medimos o animal dominante que está em nós e que nem sempre somos capazes de submeter e de ordenar. Precisamente por isso – acredito eu – Jesus anunciou o mistério da sexualidade e ligou-a de modo escatológico ao reino de Deus vindouro. A castidade é um longo trajecto, e só seremos verdadeiramente castos se aceitarmos morrer, se formos capazes de fazer da morte um acto, um acto de dissolução de vínculos.

Nós cantamos com muita facilidade o celibato que faz profissão de castidade, esquecendo que o celibato é uma situação que se vive, enquanto a castidade está noutro nível: não é uma situação, mas uma dinâmica que nunca atinge plenamente o seu objectivo. Nós, humanos, somos tão fracos, conhecemos tão pouco as nossas profundidades, não temos domínio sobre as profundidades das nossas profundidades e somos habitados por pulsões e desejos nem sempre distinguíveis. Precisamente por isso, ouso dizer que aqueles que fazem profissão de celibato podem prometer diante de Deus e expressar essa situação com os votos, enquanto a castidade não deveria ser uma promessa, porque o sujeito pode tender para aí, mas nunca vivê-la sem falhas nem contradições.

O celibato cristão exige que se procure a castidade, mas não se identifica com ela. Do celibato, pode-se dizer que é “grandeza”, mas deve dizer-se que é também “miséria”, aquela miséria que cada um conhece nas suas contradições à castidade: contradições a nível de pensamentos, palavras, acções e até mesmo omissões, porque, às vezes, a castidade verdadeira exige omitir, especialmente na relação com o Senhor, um investimento daquilo que deve ser investido somente na relação sexual entre humanos. A magia também é querer com Deus relações que o Senhor quis apenas entre os humanos: relações boas e bonitas, mas humanas! Eis porque acho que não se pode viver o celibato sem crer, acolher e viver a misericórdia do Senhor. Maior est Deus corde nostro (1 João 3, 30).