Arquidiocese de Braga -

22 abril 2011

IGREJA, CASA DO SILÊNCIO ELOQUENTE

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Colaborador

Meditação de D. Jorge Ortiga na celebração da Paixão e Morte do Senhor com ofício de Vésperas.

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IGREJA, CASA DO SILÊNCIO ELOQUENTE

Sexta-feira Santa - 2011

 

Em dia de Sexta-feira Santa, a nossa Catedral reveste-se de um ambiente simbólico e significativo. O tom sombrio e escuro não recorda apenas um acontecimento do passado mas condensa em si o mistério de Deus no mistério do ser humano.

            Por um lado, revivemos a situação da noite, sinónimo de tristeza pela partida d’Aquele que amamos. Por outro, a noite torna-se ambiente favorável para ouvir melhor o que a azáfama quotidiana impede. O mundo mergulhou na noite e nas trevas por causa da morte de Cristo e esta nebulosidade nocturna é símbolo dum mundo perdido e à procura de sentido. A noite é, também, silêncio profundo carregado duma graça característica para escutar. Na verdade, todos reconhecemos estas duas realidades verdadeiras e contrastantes.

            Se a exigência de tornar a nossa Igreja Casa da Palavra nos acompanhou durante esta Quaresma, reconheçamos que a nossa casa interior está repleta de rumores, barulhos. Uns vindos de fora pelos meios comunicativos que não ousamos desligar; outros provocados pela maledicência e pela violência física e verbal.

            Necessitamos de silêncio na nossa vida pessoal e familiar. Neste silêncio, precisamos de descortinar que a cultura moderna, apesar da sua tremenda confusão ideológica e vivencial, pode conduzir-nos à luz, desde que ousemos retirar consequências e discernir as causas que nos conduziram a este mal-estar civilizacional.

            Celebramos a morte do homem – Cristo – e ouvimos, no silêncio, a lição da Sua morte. Nela está o amor, a capacidade de entregar-se, de ir até ao fim. Isto que o silêncio nos conta, está a exigir um novo humanismo que afaste o interesse e o amor-próprio, e proponha a lógica da reciprocidade e gratuidade, do dom, da oferta, como a Palavra nos aponta.

Hoje o homem está a destruir-se e parece que não quer aperceber-se do caminho que está a percorrer. Ouvir o silêncio eloquente da morte de Cristo a apontar um caminho diferente, relembro de memória um texto de M. Ghandi, pois ouvi-o numa conferência: “O homem destrói-se com a política sem princípios, com a riqueza sem trabalho, com a inteligência sem a sabedoria, com a economia sem a moral, com a ciência sem humanidade, com a religião sem fé, com o amor sem doação de si”.

            Diante de Cristo morto, na certeza da Sua ressurreição, e perante o silêncio que cada um deve fazer na sua vida interior para se questionar, sublinho que:

            - Houve um tempo, no mundo da política, de coerência com os princípios que suportavam um verdadeiro humanismo. Hoje o relativismo permite tudo e a verdade de agora esquece-se perante as conveniências, pessoais ou do partido, do grupo ou daquilo que está na moda. Não necessitaremos duma política solidamente estruturada em valores norteados pelo bem comum e dignidade humana de todos?

            - Houve um tempo em que a riqueza acontecia como resultado de muito trabalho e persistência. Quem a possuía sentia-se no dever de partilhar com quem não tinha. Hoje não estaremos a caminhar na lógica do lucro fácil obtido de qualquer jeito, mesmo por processos corruptos?

            - Houve um tempo em que se investia no estudo sabendo congregar o esforço intelectual com o dom das capacidades pessoais para dotar a humanidade duma verdadeira evolução e progresso, sempre na lógica da verdade e do bem. Não estaremos perante um deficit cognitivo que se contenta com o mais fácil para poder estar na moda?

            - Houve um tempo em que a economia jogava com processos de consciência rectamente formada e pautada por critérios morais que transpareciam nos comportamentos. Não estaremos hoje na lei do mais forte e na actuação sem escrúpulos e de alheamento da dimensão humana do social?

            - Houve um tempo em que a ciência se orgulhava por estar ao serviço das causas verdadeiramente humanas e as quais servia fornecendo meios e técnicas novas. O agora da ciência não será, por parte de alguns,  mais um exercício de prestígio do que preocupação pelo o humano?

            - Houve um tempo em que a religião era expressão duma fé firme e consistente capaz de motivar comportamentos audazes ou mesmo provocadores de testemunhos eloquentes. Não estaremos numa estação de prestação de serviços, por um lado, e de exigência rituais, por outro, sem um encontro profundo com Jesus Cristo?

            - Houve um tempo em que o Amor era verdadeiro na doação total e comprometido na lógica do perene, do gratuito e do incondicional. Não estamos perante meros jogos de experiência, tendentes a satisfazer gostos pessoais sem responsabilidade e doação consciente de quem somos?

            Usei sete vezes a expressão “Houve um tempo”. Não quis situar-me no passado. Só pretendi que nesta casa de silêncio, a praticar e a intensificar, escutássemos a novidade duma morte que não permite que as coisas continuem a desenrolar-se da mesma maneira.

            Se necessitamos de silêncio para ouvir, não podemos esquecer que existem silêncios de omissão que estão a corromper a política, a moral, a justiça, a verdade, a vida económico-financeira. O silêncio de Cristo é eloquente porque deu voz e luz ao sofrimento das vítimas da história. Daí que, perante a morte de Cristo, não possamos aceitar o silêncio do medo e da falta de coragem perante as vítimas de pessoas sem escrúpulos.

 A morte de Cristo fala de Vida oferecida. Saibamos aceitar essa Vida. Acolhamos este dom na Palavra e vivamos o humanismo de Cristo para um novo modo de humanidade. Temos de tornar Igreja Casa da Palavra e da humanidade. Que cada um o seja. Para isso, acreditemos na urgência do silêncio, dentro da Igreja e no quotidiano da nossa vida.

Termino com um poema de Daniel Faria que nos introduz no mistério da morte que se faz vida a partir da luz de Cristo:

Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo.

 

Sé Catedral, 22 de Abril de 2011

 

Jorge Ortiga, A.P.