Arquidiocese de Braga -
30 dezembro 2007
Conto: O Anjo do Natal

Fotografia
Helena Guimarães
\nEra uma vez uma família a sério. Dela fazia parte um pai, que sustentava zelosamente a casa, uma mãe, uma esposa, socialmente exemplar, e três filhos, cujas idades distavam dos três aos catorze anos. Com efeito, era considerada uma família numerosa, uma família de bem, tomada como paradigma da comunidade, invejada por vizinhos e conhecidos. Moravam numa vistosa e exuberante moradia; tinham empregadas e carros de alta cilindrada; desfilavam, nas roupas e nos acessórios, marcas inacessíveis ao comum dos mortais; frequentavam restaurantes e locais très chics. Em suma, eram uma família sem par, despojada de problemas e coroada de todas as benesses.
Era uma vez uma família, por vezes socialmente desconsiderada como tal. Era constituída por uma mãe anónima na comunidade, um avô acamado em estado agonizante, dois filhos, de cinco e onze anos. Viviam num exíguo apartamento, numa prédio sem cor, numa rua projectada que alguém se esquecera de nomear. Viviam com evidentes dificuldades materiais. Não constavam dos cardápios sociais, pois famílias catalogadas como disfuncionais, ao que se presume, só servem para exemplificar quadros sociológicos problemáticos, em congressos promovidos por famílias de bem.
Entretanto, o Natal aproximava se a largas golpadas comerciais e ambas as famílias se mobilizaram em seu redor.
Na família a sério, os enfeites nas portadas não enganavam ninguém nem o mega pinheiro com fluorescências de luxo. Tudo seria perfeito. Os presentes, os mais caros e sofisticados, haviam sido esteticamente colocados sob a ampla chaminé. Não faltaria nada, nem um único pormenor irrelevante. Seria um Natal a sério! E, seguindo o espírito epocal, ninguém havia sido esquecido. Todos haviam recebido postais, haviam sido lautamente presenteados. Na noite da ceia, os elementos daquele núcleo familiar estariam todos presentes e em comunhão com o espírito caloroso que a época propiciaria.
No outro lado, não havia quase nada e o Natal adivinhava se vazio de alegria. O pai das crianças ficaria, por decisão do tribunal, com aquelas na noite de ceia. Logo, com a perspectiva de ser significativamente truncada, a família aguardava, com discreta mágoa, o Natal.
Chegada a noite de ceia, na casa vistosamente iluminada, o jantar afigurou se, efectivamente, deslumbrante. Os pratos haviam sido criativamente confeccionados por terceiros, mas mal foram provados.
A filha mais velha zangara-se com o segundo namorado daquela semana, por causa de um capricho de que já não tinha memória, e passara o jantar concentrada no telemóvel, além de que não podia comer nada daquilo para continuar a poder vestir roupa do tamanho que a obrigava ora a vomitar depois das refeições sociais (já que nas outras ninguém tinha tempo para perceber de que nada era ingerido) ora a mentir (supostamente já comera imenso em casa das amigas, também anorécticas).
O filho do meio não retirara a atenção do jogo que engolia todo o seu interesse, pois perder tempo com uma garfada, seria a sua morte imediata, algo que os adultos nunca entenderiam nem procurava explicar lhes. Nem mesmo quando quase urinava no local onde estava, para não ter de se dispersar uma única preciosa fracção de segundo.
O mais novo preenchera o tempo do jantar a tentar mendigar atenção por parte dos restantes, semeando irritantemente gritos e imundícies, invariavelmente acolhidas pela mãe como sendo manifestações de hiperactividade.
Quanto aos pais, esses também não se dedicaram propriamente ao repasto, estando um ansiosamente à espera de uma SMS da amante que indicasse a aprovação da dispendiosa jóia comprada na véspera, e a outra preocupada com a dieta, com o cabelo cuja cor não ficara tão bem quanto desejara, com uma quase invisível mancha no rosto que, por ser dia santo, no dia seguinte não poderia ir a correr retirar na clínica de estética. Uma maçada!
Assim, quando à meia noite protocolar, aquela que tardava pesadamente em chegar, se abriram os presentes esperáveis, todos eles dispersaram entediados pela fria asfixia que sentiram por terem de coabitar tempo interminável em volta daquele jantar institucional. E todos eles se recolheram pensando na forma como engendrariam uma desculpa para não estarem ali presentes no Natal seguinte, à excepção do mais novo que concluiu que noutros Natais seguinte ainda seria mais insuportavelmente mal-educado.
No outro lado da cidade, a mãe, ainda que entristecida pela ausência dos filhos, cuidou carinhosamente do pai idoso, como sempre fazia, mesmo quando o cansaço extremo a seduzia para o deixar num lar. Durante o dia, o serviço domiciliário era uma ajuda de ouro, mas até essa temia um dia não conseguir pagar. Quando os filhos regressaram no dia seguinte, cobriu-os de beijos e deu-lhes o que o seu parco vencimento lhe deixava comprar. Os miúdos sorriram, agradeceram e ofereceram lhe um anjo pardo de cartão reciclado, que ela religiosamente colocou sobre o presépio que todos tinham construído, com limitações e materiais toscos, mas acessíveis. Lágrimas emotivas escorriam lhe sem cessar, tanta era o preenchimento afectivo que sentia. Jantaram a refeição que ela se esforçara por preparar como especial e dela não ficaram vestígios, no meio das conversas e risos em que evocaram tempos de memória feliz.
Ah! O anjo tinha uma oração numa caligrafia pouco cuidada: Jesus, obrigados pela nossa família! João e Luís.
Na casa artificialmente iluminada, também havia um anjo, alvo e brilhante. Fora comprado por uma das três empregadas, a do fim de semana, que conseguira erigir a árvore de Natal do salão, depois de ter fechado o puto endiabrado na cave, controlado pelo raivoso rottweiler que o pai comprara havia muito e que ninguém se lembrara ainda de nomear. O anjo não tinha nele inscrita mensagem nenhuma. Pois que havia a dizer, quando, no dia 25 de Dezembro, à noite, todos eles jantavam ou simulavam fazê lo sofrivelmente, enfiados cada qual numa divisória distante da mansão, alheados uns dos outros, enquanto que o anjo, imponente pelo preço, jazia abandonado no chão?
É claro que nem todos os anjos de Natal, em famílias, arroladas como sérias e numerosas, testemunham aquela miséria humana. Graças a Deus! E nem todas as famílias, ditas com formatação diferente, têm anjos calorosos como o do conto. Alguns agonizam diante de cenários de sofrimento e efectiva disfuncionalidade. É que o problema aqui não é dos anjos… mas da rotulagem!
Festas felizes para todas as famílias!
Helena Guimarães
Departamento Arquidiocesano de Pastoral Familiar
Era uma vez uma família, por vezes socialmente desconsiderada como tal. Era constituída por uma mãe anónima na comunidade, um avô acamado em estado agonizante, dois filhos, de cinco e onze anos. Viviam num exíguo apartamento, numa prédio sem cor, numa rua projectada que alguém se esquecera de nomear. Viviam com evidentes dificuldades materiais. Não constavam dos cardápios sociais, pois famílias catalogadas como disfuncionais, ao que se presume, só servem para exemplificar quadros sociológicos problemáticos, em congressos promovidos por famílias de bem.
Entretanto, o Natal aproximava se a largas golpadas comerciais e ambas as famílias se mobilizaram em seu redor.
Na família a sério, os enfeites nas portadas não enganavam ninguém nem o mega pinheiro com fluorescências de luxo. Tudo seria perfeito. Os presentes, os mais caros e sofisticados, haviam sido esteticamente colocados sob a ampla chaminé. Não faltaria nada, nem um único pormenor irrelevante. Seria um Natal a sério! E, seguindo o espírito epocal, ninguém havia sido esquecido. Todos haviam recebido postais, haviam sido lautamente presenteados. Na noite da ceia, os elementos daquele núcleo familiar estariam todos presentes e em comunhão com o espírito caloroso que a época propiciaria.
No outro lado, não havia quase nada e o Natal adivinhava se vazio de alegria. O pai das crianças ficaria, por decisão do tribunal, com aquelas na noite de ceia. Logo, com a perspectiva de ser significativamente truncada, a família aguardava, com discreta mágoa, o Natal.
Chegada a noite de ceia, na casa vistosamente iluminada, o jantar afigurou se, efectivamente, deslumbrante. Os pratos haviam sido criativamente confeccionados por terceiros, mas mal foram provados.
A filha mais velha zangara-se com o segundo namorado daquela semana, por causa de um capricho de que já não tinha memória, e passara o jantar concentrada no telemóvel, além de que não podia comer nada daquilo para continuar a poder vestir roupa do tamanho que a obrigava ora a vomitar depois das refeições sociais (já que nas outras ninguém tinha tempo para perceber de que nada era ingerido) ora a mentir (supostamente já comera imenso em casa das amigas, também anorécticas).
O filho do meio não retirara a atenção do jogo que engolia todo o seu interesse, pois perder tempo com uma garfada, seria a sua morte imediata, algo que os adultos nunca entenderiam nem procurava explicar lhes. Nem mesmo quando quase urinava no local onde estava, para não ter de se dispersar uma única preciosa fracção de segundo.
O mais novo preenchera o tempo do jantar a tentar mendigar atenção por parte dos restantes, semeando irritantemente gritos e imundícies, invariavelmente acolhidas pela mãe como sendo manifestações de hiperactividade.
Quanto aos pais, esses também não se dedicaram propriamente ao repasto, estando um ansiosamente à espera de uma SMS da amante que indicasse a aprovação da dispendiosa jóia comprada na véspera, e a outra preocupada com a dieta, com o cabelo cuja cor não ficara tão bem quanto desejara, com uma quase invisível mancha no rosto que, por ser dia santo, no dia seguinte não poderia ir a correr retirar na clínica de estética. Uma maçada!
Assim, quando à meia noite protocolar, aquela que tardava pesadamente em chegar, se abriram os presentes esperáveis, todos eles dispersaram entediados pela fria asfixia que sentiram por terem de coabitar tempo interminável em volta daquele jantar institucional. E todos eles se recolheram pensando na forma como engendrariam uma desculpa para não estarem ali presentes no Natal seguinte, à excepção do mais novo que concluiu que noutros Natais seguinte ainda seria mais insuportavelmente mal-educado.
No outro lado da cidade, a mãe, ainda que entristecida pela ausência dos filhos, cuidou carinhosamente do pai idoso, como sempre fazia, mesmo quando o cansaço extremo a seduzia para o deixar num lar. Durante o dia, o serviço domiciliário era uma ajuda de ouro, mas até essa temia um dia não conseguir pagar. Quando os filhos regressaram no dia seguinte, cobriu-os de beijos e deu-lhes o que o seu parco vencimento lhe deixava comprar. Os miúdos sorriram, agradeceram e ofereceram lhe um anjo pardo de cartão reciclado, que ela religiosamente colocou sobre o presépio que todos tinham construído, com limitações e materiais toscos, mas acessíveis. Lágrimas emotivas escorriam lhe sem cessar, tanta era o preenchimento afectivo que sentia. Jantaram a refeição que ela se esforçara por preparar como especial e dela não ficaram vestígios, no meio das conversas e risos em que evocaram tempos de memória feliz.
Ah! O anjo tinha uma oração numa caligrafia pouco cuidada: Jesus, obrigados pela nossa família! João e Luís.
Na casa artificialmente iluminada, também havia um anjo, alvo e brilhante. Fora comprado por uma das três empregadas, a do fim de semana, que conseguira erigir a árvore de Natal do salão, depois de ter fechado o puto endiabrado na cave, controlado pelo raivoso rottweiler que o pai comprara havia muito e que ninguém se lembrara ainda de nomear. O anjo não tinha nele inscrita mensagem nenhuma. Pois que havia a dizer, quando, no dia 25 de Dezembro, à noite, todos eles jantavam ou simulavam fazê lo sofrivelmente, enfiados cada qual numa divisória distante da mansão, alheados uns dos outros, enquanto que o anjo, imponente pelo preço, jazia abandonado no chão?
É claro que nem todos os anjos de Natal, em famílias, arroladas como sérias e numerosas, testemunham aquela miséria humana. Graças a Deus! E nem todas as famílias, ditas com formatação diferente, têm anjos calorosos como o do conto. Alguns agonizam diante de cenários de sofrimento e efectiva disfuncionalidade. É que o problema aqui não é dos anjos… mas da rotulagem!
Festas felizes para todas as famílias!
Helena Guimarães
Departamento Arquidiocesano de Pastoral Familiar
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