Arquidiocese de Braga -
19 abril 2024
Ajuda-nos a ver
Homilia de D. José Cordeiro, nas Exéquias da Gabriela
Eduardo Galeano, em O Livro dos Abraços, conta a história de Diego que, todos os dias, com insistência, pedia aos pais para ver pela primeira vez o mar. Um dia, cumprindo o pedido do filho, os pais levaram-no a ver o mar. Depois de muito caminharem, quando chegaram à praia, o mar estava diante dos seus olhos. O filho, colado à mãe e ao pai, pediu-lhes baixinho: pai, mãe, ajudem-me a ver!
1. Uma ferida por cicatrizar
A vida é insondável. Umas vezes, é uma maravilha que reconhecemos não merecer; outras é um inferno que nos ameaça e destrói. Hoje, congrega-nos o absurdo! Esta morte abre um abismo que engole o passado, assola o presente e devora o futuro. As lágrimas não se conseguem travar diante desta partida sem aviso. Choramos por cada memória, por cada abraço, por cada saudade. É uma ferida por cicatrizar. É um vazio que nunca se preenche. É uma ausência que continuará a doer-nos até ao fim!
A morte da pequena lobita Gabriela é a mais cruel de todas as provações. De um momento para o outro, a vida desabou, e arruinaram-se os sonhos e as expectativas, os projetos e as esperanças, os desejos e a vontade de os concretizar. Num dia, celebrávamos a tua promessa de lobita, acompanhávamos as caçadas da tua alcateia e o significado que ias dando ao Livro da Selva; no outro, assistimos à tua trágica partida.
Na verdade, a Gabriela partiu, mas não estou certo de que tenha morrido, porque o que nos deixou é vida, sede e fome de fazer. A Gabriela é um convite à celebração da vida, mesmo quando a vida é brutal e nos esmaga o entendimento; ela ficará como um ícone da juventude, da beleza, que nos faz, apesar de todas as monstruosidades, querer arriscar pelo caminho do bem.
2. Uma dor sem nome
Não conseguimos imaginar a dor de quem perde um filho. É o impossível a acontecer. É sempre impossível quando um pai ou uma mãe perdem um filho. Não há palavras para descrever a morte de um filho por nos ser impossível imaginá-las. Um filho pode perder os seus pais, e sabemos que existe uma palavra para o definir: órfão.Mas quando uma mãe ou um pai veem o seu filho partir, não há palavras para o expressar por nada existir para lá do inominável abismo e do horror absoluto. Como imaginar a dor daqueles que dizem, dia após dia, em refrão: está frio, leva o casaco; manda mensagem quando chegares; está mau tempo, toma cuidado; depois diz-me como correu; estás bem? eu avisei-te; o almoço está pronto; deixa-me ver isso; não quero que venhas tarde; não dormi enquanto não chegaste; parabéns; adoro-te.
Hoje, abraçamos a vossa dor. Talvez esta dor - o revés de um parto - seja a que mais questiona a nossa fé. Se Deus é Amor, então porque é que Ele não a salvou? Se Jesus é realmente o Salvador do mundo, então onde é que Ele está neste momento tão angustiante? E o que diz Deus? Que partido toma? De que lado está? Porque é que não Se pronuncia?
Quem sofre pela perda tem direito a estes gritos. Não são blasfémias. Aliás, podem ser autênticas orações. Deus, em Jesus Cristo, vem ao nosso encontro, sente as nossas dores e acompanha-nos amorosamente no nosso sofrimento. A Gabriela, a quem muito amamos, será transfigurada pelo amor que Deus é. Todos os dias devíamos rezar com ela, convocá-la para a nossa vida para não nos perdermos dela, pois ela nunca se perderá de nós. Como não recordar intensamente o seu riso, os seus gestos, a sua ternura, o seu rosto, as suas palavras e desejos? Deus é Deus dos vivos, não fez a morte (Sb 1, 13-15), e apenas quer que à morte não lhe seja dada a última palavra.
Se Deus existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela está viva, porque aqueles que amamos são para sempre, e não há ausência que apague o Amor. Mais forte que a morte é o Amor. Se Deus existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela, de lenço amarelo ao peito, está viva nas alegrias que derramou em tantas vidas e na memória dos abraços que ninguém pode arrancar de nós. Se Ele existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela está viva nas imagens que dela guardamos no coração e no sorriso com que acolhemos tantas lembranças suas. Está viva porque, quando nós amamos, nós escolhemos que esse alguém fique connosco para sempre.
3. Ajuda-nos a ver-te
Hoje, pequena Gabriela, somos nós a pedir-te: ajuda-nos a ver! Gabriela, ajuda-nos a ver, através do horror da tua partida, os motivos para viver e a urgência de fazer com que a tua vida não morra. Ajuda-nos a ver a luz, e não a escuridão. Ajuda-nos a acreditar que a vida não se esgota neste caminho. Ajuda-nos a ver a esperança e a encontrar um sentido para a nossa própria história. Ajuda-nos a ver a ternura dos abraços, o afeto, a imaginação, o colo materno e paterno da confiança e a arte de recomeçar, tão própria das crianças. Ajuda-nos a ver aquilo que traz cada novo dia, quando ainda se derramam lágrimas pela tua partida. Ajuda-nos, pequena Gabriela, através do teu exemplo, a deixar o mundo um pouco melhor do que ele é, enquanto aqui estamos.
A todos os que vivem esta dor, abraço-vos e agradeço-vos por serdes tanto; mesmo tendo perdido tudo, é tanto.
+ José Manuel Cordeiro
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