Arquidiocese de Braga -

22 novembro 2020

Não caminharás sozinho

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Itinerário espiritual diante da experiência do Covid-19

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1. A pandemia tem tido muitas abordagens desde o sanitário ao social. São sugeridos comportamentos responsabilizantes para fugir ao contágio e evitar a propagação. A vida está a ficar diferente. As pessoas, quando infectadas, são obrigadas ao isolamento na responsabilidade de o assumirem sozinhas. Nem todas conseguem viver positivamente estes momentos e começam a surgir situações de depressão. Por vezes queremos que a fé elimine os contratempos. Se a fé não elimina, ela pode acompanhar e ser ajuda. Precisamos de colocar espiritualidade para vivenciar esses momentos, não só com serenidade mas como enriquecimento humano e espiritual.

2. A experiência de contágio expõe momentos de grande dramaticidade na nossa vida e na nossa família, a saber: a fragilidade de termos de comunicar o contágio àqueles com quem privamos recentemente (pois a rapidez da comunicação pode evitar outros contágios), a experiência do isolamento total, o medo de contagiarmos aqueles que nos são mais próximos, a pressão sobre a incógnita de como ficará a nossa situação profissional ou escolar, a novidade de sermos consultados pela telemedicina (e quando devemos agradecer aos enfermeiros, médicos e colaboradores do SNS que se gastam por nós), a urgência de transformarmos a nossa casa num autêntico hospital doméstico, a angústia de chorarmos (sem lágrimas) de desespero, a pressão de não dormirmos na noite anterior ao dia em que recebermos o resultado de mais um teste, a tristeza de perdermos o controlo dos projectos próximos da nossa vida, a impotência que parece desafiar a nossa oração… e a esperança que parece ser mais um mito sem efeito na tua vida concreta.

3. Em modo de síntese, penso que são quatro os grandes momentos que atravessamos no período da experiência do contágio e confinamento, que, à luz da fé, devem ser encarados como um autêntico itinerário espiritual. Em cada momento pode haver uma experiência diferente e progressiva com Deus. Quem já passou por estes momentos pode confirmar. Os outros devem estar preparados para os aproveitar através de uma atitude espiritual a viver partindo de uma frase do Evangelho. Se for rezada interiormente, no íntimo do coração ou na partilha com os familiares, não desperdiçaremos o que custa e que temos dificuldade em compreender. A Palavra de Deus é sempre amparo e conforto. Peguemos na Sagrada Escritura e façamos a leitura do texto indicado, interpretado através da pergunta que, de seguida, formulo.

3.1. Primeiro, o “momento do susto”. Quando sentimos os primeiros sintomas e acolhemos o resultado de um teste positivo ao contágio, o qual expõe ao extremo a nossa fragilidade e pequenez humana, no meio da perplexidade e incómodo, devemos perguntar rezando: Senhor, será que me vais ajudar a atravessar este tormento? (cfr Mt 15, 21-28).

3.2. Segundo, o “momento heróico”. Quando após a primeira ou segunda semana já recuperaste de todos os sintomas e pensas que a luta já está praticamente vencida, então deverás perguntar: Senhor, porque permitiste que eu fosse contagiado? (cfr. Jo 11, 17-27).

3.3. Terceiro, o “momento da revolta”. Quando, após vários testes e semanas em confinamento, o resultado ainda não dá negativo, então conforta-te perguntando: Senhor, porque demoras tanto a ajudar-me? (cfr Mt 8, 1-9).

3.4. Quarto, o “momento da aceitação”. Quando após várias semanas sem conseguires vencer totalmente o vírus, sentes que mais do que a pressa em ter um resultado negativo para regressar rapidamente à vida social, o mais importante é recuperar bem para viver o resto da vida. Então coloca-te em questão perguntando: Senhor, o que me queres ensinar a partir da experiência deste tormento? (cfr Jo 20, 11-18).

4. A situação da pandemia está a levar-nos a muitas considerações. Queremos respostas e compreender a razão de tanta vulnerabilidade. A ciência explica alguma coisa mas pára perante tantas interrogações. Mergulhar dentro de si e procurar fazer uma experiência espiritual pode ser a lição a retirar para si e para os outros. A vida espiritual não é um acumular de respostas rápidas de Deus, mas um caminho de intimidade com Deus. A experiência directa ou indirecta com este vírus também é um desafio à nossa fé e às perguntas fundamentais da nossa existência, quer sejamos crentes ou não. Diante de tudo isso, a bela parábola do Bom Samaritano (cfr. Lc 10, 30-37) recorda-nos a certeza de que acreditamos num Deus que existe antes de nós, que está connosco e que espera por nós. Caídos à margem da vida sentimos que alguém nos toca e transporta para a cura. A Igreja também está neste processo como verdadeira estalagem ou “hospital de Deus”. 

5. A todos aqueles que viveram ou ainda vivem esta experiência, deixo este itinerário espiritual em sinal de solidariedade no sofrimento. Não desperdicemos o que pode ser uma graça. A todos os intervenientes sociais no combate a esta pandemia, deixo, mais uma vez, uma palavra de ânimo e profunda gratidão. A todos deixo uma palavra de esperança na confiança que o Senhor está connosco. Mas, principalmente, porque a vida do outro também depende de mim, afirmo com toda a ênfase: ser cristão em tempo de pandemia é dizer ao próximo: não caminharás sozinho! Deus está contigo. A Sua Palavra é conforto. Estamos todos interligados numa comunhão de vida e amor e gostaria que contasse comigo para que a coragem nunca esmoreça.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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