Arquidiocese de Braga -

13 julho 2015

Homilia da Celebração da Festa Litúrgica de S.Bento

Fotografia DACS/ Fotografia: Álvaro Magalhães

D. Jorge Ortiga apelou à evangelização das peregrinações, na Eucaristia celebrada na cripta do Santuário de S.Bento da Porta Aberta.

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Evangelizar as peregrinações

A história da humanidade, desde os primórdios da criação, apresentou o homem na sua condição de Viator, o caminhante. A ideia de movimento exprime a natureza do Homem como alguém que está dinamicamente orientado para uma meta ou metas a alcançar.

A sociedade moderna, como sabemos, potenciou ainda mais esta característica. Todos gostamos de conhecer países, de nos enriquecermos com outras culturas e de conviver com mentalidades diferentes. Procuramos, de igual modo, estilos de vida saudáveis: corridas individuais ou em grupo, caminhadas solidárias, corridas de bicicletas, etc.. Exercícios físicos e modos de estar que preencham a nossa vida de sentido.

Mas o cenário inverso também é verdadeiro. Deixamo-nos tomar pelo frenesim de correr de um lado para o outro, quase sempre dominados pela ânsia intranquila de alcançar mais alguma coisa para a nossa vida. Ora é a pressão dos horários, ora a procura de mais dinheiro, ora os convívios barulhentos e desgastantes. Coisas que distraem o ser humano e não permitem que ele se encontre consigo próprio.

A esta estrutura natural do homem Viator, a Igreja foi introduzindo outra palavra ou realidade que, apesar de acolher esta tendência natural, inculcou uma dinâmica totalmente nova. Refiro-me à peregrinação. Uma realidade marcante na história da Igreja e no dinamismo da espiritualidade mas que, hoje, necessita de reencontrar o seu carisma mais profundo. A peregrinação é, de algum modo, um êxodo interior para dar espaço à criação. Na verdade, a natureza do homem é “excêntrica”, ou seja, tem o epicentro fora de si e deixa-se orientar pela grande alteridade que é Deus e, em Deus, os outros.

Existe uma passagem na carta aos Hebreus que nos faz compreender esta realidade. “Portanto, estamos rodeados dessa nuvem de testemunhas. Deixemos de lado tudo o que nos embaraça e o pecado que se agarra a nós. Corramos com perseverança a corrida, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé”. (Heb 12, 1-2).

Quando se abraça a fé, o egocentrismo e a egolatria causam repulsa e optamos por comportamentos diferentes. São muitos os exemplos neste sentido. Temos a memória histórica de homens e de mulheres que se deixaram possuir por Jesus, encetaram uma verdadeira corrida para O encontrar e possuir, apostando numa vida de conversão. Recusaram coisas e pessoas que impedissem calcorrear o caminho do bem, à semelhança de Jesus, e de materializar o Reino com obras de testemunho. O homem Viator representa um errante fechado em si mesmo. O Homo peregrinus, por sua vez, caminha em direcção a uma meta, libertando-se do peso de uma vida que, tantas vezes, se arrasta por más opções ou por incapacidade de deixar partir as pessoas que não são benéficas. O peregrino assume a postura descrita no livro dos Actos dos Apóstolos: “os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tacteando” (Act 17, 27).

É, por certo, este o verdadeiro sentido de peregrinação, seja ela realizada a pé ou de automóvel. Sei que muitos percorrem os caminhos de S. Bento, de Santiago e de Fátima por mera diversão ou passatempo. Em certa medida é legítimo que o façam. Mas, ao mesmo tempo, peregrinar não se confunde com caminhar. Importa que a Igreja seja mestra e ensine, mas também que, ela própria, peregrine com as pessoas. É neste recíproco peregrinar que se joga a confiança e se abrem novas portas que, até então, pareciam fechadas. Um bom amigo é capaz de transformar a diversão num encontro revolucionário. A complexidade e a fragmentação da vida estão a suscitar uma necessidade do sagrado, do transcendental, à qual não nos podemos alhear.

A realidade da peregrinação não pode ser um simples parênteses que se esquece numa caminhada ocasional. Não pode ser, tão pouco, uma mera prática devocional, embora muito nobre e interessante, restrita a promessas e a pedidos. A pastoral da peregrinação deve proporcionar todas as condições para que nasça ou se consolide o encontro do homem com a verdade absoluta de Deus. 

Neste aspecto, os mosteiros, as basílicas e os santuários desempenham um papel de enorme responsabilidade. São o ponto seguro quando tudo é efémero. São a certeza quando tudo é escorregadio. São a hospitalidade quando os braços se fecham. Peregrinar a um santuário, após uma longa caminhada, é, por isso mesmo, um evento profundamente religioso. Confirma a vontade séria de mudança, o desejo de repensar a vida e a intenção de reordenar comportamentos éticos, morais e sociais da existência. Esta é a meta. O ponto de partida, por sua vez, faz-se com o Evangelho na mão, com o desprendimento de interesses pessoais para pensar, sentir, querer algo novo para a relação com Deus, com as pessoas e com a sociedade.

Para além do Evangelho, deveríamos levar outros “companheiros de peregrinação”. Em primeiro lugar, Jesus Cristo, o verdadeiro peregrino que fez da nossa estrada a Sua casa. Em segundo lugar, os santos, testemunhas credíveis da ressurreição de Cristo. Por fim, Nossa Senhora, mãe e consoladora dos peregrinos. A sua companhia, estou certo, proporcionará conversas densas de sentido e as luzes que tantas vezes procuramos para a nossa vida.

Estando presente aqui neste Santuário, não posso deixar de evocar a figura de S. Bento e os caminhos férteis que ele trilhou na sua vida: a procura e a fidelidade a Deus, o caminho colegial com os membros da comunidade e o equilíbrio saudável entre a oração e o trabalho. Se estas máximas entrassem nas nossas conversas e intenções, aqui no Santuário ou noutros caminhos percorridos, estou certo que a nossa existência seria bem diferente. Não poderá ser este um modo válido para vivermos a fé? 

Diante de S. Bento, rezo para que nunca nos contentemos em ser caminhantes ou “peregrinos da modernidade”. Sejamos verdadeiros peregrinos. Invistamos no silêncio ouvinte. Libertemo-nos das coisas que prometem e não cumprem. Sejamos peregrinos da eternidade. Procuremos um encontro com o Eterno, sabendo que encontraremos a luz que vai iluminar os passos da existência pessoal, familiar ou comunitária. E, por outro lado, que a Igreja, no meio de tanta diversidade de caminhadas, invista na evangelização das peregrinações, estruturando uma pastora que conduza a esta opção.



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