Arquidiocese de Braga -

24 julho 2020

ESPIRITUALIDADE, ARTE E POESIA: o ser humano procura o que está ao longe

Fotografia

Departamento para a Cultura, Diálogo Ecuménico e Inter-religioso

Intervenção de Luís Miguel Cintra alusivo à temática 'Aprendizagem e competências comunicacionais por meio das artes' (9 de julho de 2020)

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Boa noite a todos!

E no entanto não vejo ninguém. Não sei quem são os que me veem. São os outros. Mas estará aí alguém? Fico mais solitário ainda? Não sei. Fico com mais vontade de os conhecer, fico sem amigo nem inimigo. Fico violento, frustrado, sem contra-cena, não entra cada um de vocês na minha consciência. Fico a braços com uma enorme responsabilidade. Perco a medida. Desrespeito a vossa existência. Exibo-me. Posso tornar-me num monstro.

Julgo que temos estado todos um pouco a viver assim. Eu menos dependente do contágio, isolado pela convalescença de um pós operatório à coluna, fechado em casa a reaprender a andar, mudando de cidade mas isolado também, sem quase nunca ter de usar a máscara, talvez me sinta mais perto dos outros dizendo que sim. Foi por isso que aceitei vir aqui. Ou melhor, aí onde cada um estiver. E vim porque alguém me pediu que o fizesse. Viesse falar, no fundo sobre o que quisesse. E, meus amigos, invento-vos e resolvo tornar em vida o que era só funcionamento estéril.

Allô Braga! Allô rapazes, seminaristas, aqui vai o que me povoa a cabeça: no velho mundo já não há distâncias…perdi o norte. Já não há contos, cardeais, pontos nem maquinistas nem Lolas de Parque Mayer. Já não há Sul. E não há casino à beira-mar.

Venho do Credo e venho do Teatro que, segundo me disse o meu avô e só lhe levo a bem, é profissão de putas e chulos. Fiz de Padre António Vieira e num dia de filmagens o realizador Manoel de Oliveira disse-me assim: Ó Luís, ainda se lembra do Credo? Foi remédio santo: depois disso voltei a ir à missa. Falando ainda de religião: fiz 2 vezes de Papa: a primeira, honrosíssima, Santo Isidoro de Sevilha, é verdade, aquele papa que no século VII disse aos nobres Godos que lhe foram perguntar quem haviam de escolher para Rei, que em sonhos lhe tinha aparecido um anjo que tinha trazido este recado: havia de ser rei quem primeiro encontrassem no caminho de regresso com uma vara na mão e a vara florisse. Foi um camponês chamado Bamba, Ainda talvez se fale dele na Idanha. Era um Papa Francisco esse primeiro papa que interpretei. Tinha um sonho. Mas ao contrário do que Lope de Vega fez na sua peça espanhola do seculo XVII, esse Lope que tornava em teatro tudo o que podia, e aqui tornava em impossível o sonho de santo Isidoro, fazer de um camponês o rei de um povo, eu resolvi ao fazer de papa e modéstia aparte com a ajuda do Dinis Gomes consegui que os espectadores gostassem mais de ver um papa sonhado a acreditar num anjo poeta, que colarem-se ao cinismo do autor chamando a santo Isidoro pateta ou traidor. É que fazer teatro é comunicar, é estar com os outros e nunca aceitaria perverter tão sublime forma de convívio. Muitas vidas de santos foram transpostas para o teatro. Fiz outro Papa que era imolado ao seu posto, tornando-se mártir da sua própria função de chefe, ao ponto de deixar de existir, colado como estava ao protótipo de papa que herdara, tornando-se em imagem toda poderosa da humildade, deixando de ser. Nem sequer ser Ninguém, como aquele D. João de Portugal, dito o Romeiro, que na que é considerada a mais lida peça de teatro portuguesa, o Frei Luis de Sousa, dá a mais aldrabona ou a mais batida das réplicas.” Romeiro, romeiro quem és tu?”” Ninguém.” Se ali está não pode ser ninguém…era bom, era. Ou é a mais banal das réplicas para quem quer ser adulado, “fishing for compliments”. Na peça que fiz, ele, esse Papa era Ela, sua Santidade, até nem sexo tinha definido, uma peça de Jean Genet, poeta genial e vidente. Esta peça já se não entende na actualidade. Ser papa passou a ser o lugar político universal que junta em seu redor os que querem um mundo sem chefes nem donos, sem relações de poder. O meu ideal de político, e fique aqui a promessa de estar sempre pronto a defendê-lo.

E voltámos ao ponto de partida. Hoje, este dia. Vezes sem fim tento imaginar uma de duas saídas opostas para tão especial situação. Se quisermos aprender com a morte, pressupondo uma mudança.

Perante uma epidemia universal, o mundo revelou a sua organização política baseada na exploração da população, ou da sua despersonalização, ausência de iniciativa, clonização das existências, pode ter a tentação de se reconstruir á força. A máscara da morte, vida fingida que mais que estruturadamente foi sendo aperfeiçoada, era um céu de papel. Os condenados desesperadamente a vestem e a vestiram como cruz de giz, uma máscara para uma vida não construída, para uma imagem de condenado e sentimento de traição. Bocas tapadas. Que fazer? Louvado seja Deus que não vem da vida, vem da morte, a revelação.

Um dia será o último dia, o dia da morte, quando finalmente a reconhecermos, como se diz no Apocalipse, Quando Deus parar o tempo. Fosse eu profeta e contra um vírus diria aos mortais: non timere. Porque chegou o fim da era do Eu. Homens de pouca fé e escravos do dinheiro, esquecestes que só Deus dirá para sempre: Ego sum qui sum.?

Só com uma obsessão na cabeça vivida como desejo imenso viraremos para o outro lado, o amai-vos uns aos outros (cuidado, que eu não disse um ao outro). Sim, é verdade, perdão, talvez seja possível, talvez seja esta a situação de caos, segundo Heiner Muller aquilo que seria a forma da nova revolução. Se calhar já começou. Terá já começado se, sem máscara, procurarmos esse nós, que desde que escrevo usei e por isso me acusavam de ladrão de identidades, e sempre teimava em substituir o EGO por um plural que nunca foi majestático. Começa por eu em A Missão esse monólogo do elevador que por duas vezes interpretei, e que projecta para diante o traidor da revolução francesa. Debuisson, trá-lo para hoje, que já foi ontem, esse futuro em que o homem no elevador vai ao escritório do chefe para ser humilhado sem deixar de ser também Debuisson, enviado da missão da revolução, no fim do século XVIII à Jamaica dos escravos.

A morte já nos apareceu sem grande espectáculo. E está a dar-nos o espectáculo de milhões de pessoas que o caos antecipou na sua forma, mais escura até que o nada: como o vírus, assim em dois dias, já a pergunta que o dinheiro escondeu mostrou a resposta que também escondia, a lagarta comeu a couve, fast forward, e os artistas têm vindo a adiar a exposição da teia de negócios que a aranha obviamente nos tecia e era a canção da Circe: Assi cantava: uma velha que tinha um gato (bis) e debaixo da cama o tinha (bis); o gato miava e a velha dizia, dizia o quê?, gritava “estou só, estou só , debaixo da cama o tinha:, estou só de uma banda só , mas a circe cantava, essa dizia: e depois da minha vida o que há? Tapo a boca com a máscara, ia gritar: foi a minha mãe que a fez, uma brincadeira com o papillon, mas foi silêncio, e depois de quase nada, e tudo parar, que há?

Há, tem de haver o verdadeiro grito de salvação: NÓS! A paz. Deixem vir a mim os outros, O homem é plural. Foi assim que o teólogo João que não sabemos quem foi e no Apocalipse nos gritou o nós, e já não havia eu, havia um anjo com uma espada e havia tribus e legiões. Todos eram os outros, todos reis e sacerdotes para Deus. Ich bin Hamlet.

Os outros. Esta morte já nós temos.

Não, não era o Nada no princípio, nem será nada no fim. No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o verbo era Deus. Depois vieram as palavras quando Deus fez o paraíso. Mas um dia depois de um dilúvio de palavras voltará o nada, só será o que é, o Verbo de novo só Deus.#

Ego sum qui sum””. Depois da ultima morte, quando a morte morrer. Passamos a citar: Eu sou o Alfa e o ómega, o princípio e o Fim, diz o Senhor (e acrescento: só ele o diz). Que é e que era e que há de vir, o todo poderoso.” Nós chamámos-lhe Deus. Antes da morte da morte.

É o que tenho andado a pensar no abismo que se abriu, quis reler o Apocalipse outra vez. Acho que entendi melhor. Grande artista esse João de Patmos, seja ele o que encostava a cabeça ao peito de Cristo ou não. Ele éramos nós. Percebo que as palavras estão gastas e já têm menos força para limitarem a nossa liberdade, os poetas e os artistas já partiram muita pedra. Agora outra linguagem inventaremos para a pouco e pouco voltar a memória das imagens até que as metáforas sejam pura música depois de terem sido a nova linguagem em que seja a maneira de melhor nos entendermos. A metáfora provoca o pensamento livre de cada outro. Uma forma. Que fiquem as formas por decifrar dos artistas, o que por natureza é bom para cada um, e o que cada um assumir a responsabilidade de entender e sobretudo a humildade de não ter de tudo dominar, confiar. Ficará sempre o que ninguém pode nomear com a habitual arma de defesa das palavras contaminadas por velhíssimos vícios de pensamento antigo.

Palavras, sim, quem primeiro faz o trabalho é o poeta, parte a pedra das palavras ideias feitas, palavras herdadas e assim recorrendo a construção de formas nalgum poema reconstitui a verdade das ideias.

Tudo são formas. E ai de nós se as deixarmos de ver.

Foi pela fé que lá cheguei e foi o que compreendi que me devolveu uma palavra já inútil. Fé. Sabeis porquê?’ Porque foi por um nós que lá cheguei e não por repetir o credo. Porque essa palavra perdeu sua matéria. Às voltas com o assunto, a palavra esvaziou-se. E aprendi no ofício de actor que a verdade não está no que se diz, está no que se é. Que interessa o que as palavras significam? O que interessa é que elas permitam que se passe o que se está a passar. O problema da mentira e da verdade deixará de existir e o teatro será finalmente um jogo. Posso acreditar seja no que quiser mas as palavras deviam fazermo-nos entender com os outros, com a confiança de falarmos por jogos de formas, e de quem vive sem desconfiar. Fé, pois, fé. A gente aprende a fazer, queima a erva ‘que‘ é preciso queimar pra que volte outra vez a crescer.

Se é preciso queimar a erva para que ela volte a crescer, e se, habituados ainda a só vermos formas e a perceber por metáforas esperamos no fim do Apocalipse descobrir ou ter ganho o castelo amuralhado da Verdade e do Bem, agora percebo que o que havia e há que descobrir é que não há morte nem princípio. No dia em que todos saberemos o que é a cidade de ouro como vidro transparente e tem doze portas que não abrem nem fecham. São 12 pérolas. Perceberemos pelo estado de oração que só há luz e já deixou de haver ontem e amanhã. A morte morreu mas só se ouvirá a voz humana quando já ninguém morrer. Ámen