DACS | Fotografias: Filipa Correia | 3 Mar 2018
Espaço Vita contou com a casa cheia na primeira noite do Ciclo Nova Ágora 2018. Inscrições para as próximas conferências estão perto de esgotar.

“Humor” e “consciência”. Se há duas palavras que podem, de alguma forma, resumir a primeira sessão do ciclo “Nova Ágora”, são estas. Os “Olhares sobre a Ecologia” contaram com a participação do Secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, José Mendes, Sofia Guedes Vaz, que trabalhou na Agência Europeia do Ambiente, e Francisco Ferreira, Presidente da Associação Zero. O debate foi moderado por Manuel Carvalho, jornalista do Público.

 

Vidas, pessoas e sonhos

Depois do momento musical proporcionado pela Artave (Escola Profissional Artística do Vale do Ave), o Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga, subiu ao palco para introduzir o Ciclo de Conferências deste ano.

“A Arquidiocese quer, com a Nova Ágora, proporcionar a toda a comunidade uma experiência emblemática de alegria, paixão e reflexão. São apenas três noites que teremos pela nossa frente mas os seus efeitos, assim creio, prolongar-se-ão por um período bem mais extenso. Os contributos dos nossos convidados e o diálogo que se proporcionará são o ponto central desta noite e uma oportunidade para nos questionarmos sobre o nosso estilo de vida e modo contemporâneo de estar em sociedade”, começou por dizer.

O prelado explicou ainda que nos tempos actuais é urgente uma transformação cultural que parta, acima de tudo, do diálogo, perante quaisquer diferenças de várias ordens. 

“É fundamental, repito uma vez mais, um novo modelo de cultura, complexo e plural, onde os diversos campos de pensamento e de acção interagem. Uma cultura com protagonistas novos, onde todos contam e valem por aquilo que são e não pelo seu estatuto social. Uma cultura que converge para a salvaguarda da dignidade humana”, indicou.

D. Jorge Ortiga concluiu a mensagem perante uma casa cheia dizendo que é fundamental que todos se tornem a âncora de uma nova cultura para a Igreja e para a sociedade, valorizando a pessoa na sua individualidade e dignidade.

“É de pessoas, vidas e sonhos que queremos falar esta noite”, afirmou.

 

Boas e más notícias

Manuel Carvalho não teve a tarefa facilitada enquanto moderador do debate. Viu-se perante uma casa cheia, uma assembleia exigente que não quis deixar as questões de lado, e três intervenientes empenhados em fazer desta uma das sessões mais memoráveis da “Nova Ágora”.

O jornalista abriu a noite agradecendo ao público o facto de ter comparecido em peso no Espaço Vita naquilo que apontou como uma “noite invernosa” e, “ainda por cima”, com direito a clássico de futebol. Depois de agradecer o “privilégio em moderar o debate”, foi directo ao assunto e espicaçou os convidados com alguns temas prementes como a mais recente vaga de frio, as alterações climáticas, a poluição, o lixo no mar, ou os danos causados pela emissão de carbono.

“O Acordo de Paris foi um grande passo em frente para a Humanidade no que diz respeito às questões ambientais, mas infelizmente ainda vemos alguns passos atrás, como é o caso da retirada da maior potência mundial do acordo, os EUA. Portugal está na vanguarda das legislações ambientais, mas é necessário saber se há coesão entre aquilo que são os planos e aquilo que é a realidade. 33% dos nossos solos estão a degradar-se e corremos o risco de ver os nossos solos transformados em desertos: não é futurismo ou pessimismo, é a realidade”, sublinhou.

Ainda assim, o jornalista não quis deixar as boas notícias de lado e explicou que, no caso do país luso, as metas de emissão de carbono, por exemplo, estão a ser cumpridas. A última “provocação” de Manuel Carvalho aos oradores incluiu as consciências individuais e a colectiva.

“Mas no final de contas, estaremos sensibilizados e conscientes sobre estas e muitas questões, sobre tantos perigos? E os poderes públicos, estarão realmente empenhados em mitigá-los?”, questionou.

 

O ambiente faz-se com pessoas

Sofia Guedes Vaz, que já trabalhou na Agência Europeia do Ambiente, começou a sua intervenção de forma inusitada, mas cinco minutos bastaram para cativar os presentes.

“Licenciei-me em Engenharia do Ambiente e depois Doutorei-me em Filosofia do Ambiente. Não sei se vocês sabem bem qual é a diferença entre as duas coisas... É que no início queria resolver os problemas no mundo, agora só penso neles”, atirou.

Depois das gargalhadas do público, Sofia começou a sua intervenção que, do início ao fim, se pode apelidar de descontraída e informal, mas igualmente “provocadora”.

A Engenheira, que também faz parte de um grupo que comunica ciência através de stand-up comedy, utilizou uma das peças do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, “Um inimigo do povo”, de 1882, para ilustrar a ideia de que sempre houve e continuará a haver uma tensão permanente entre Ambiente, Economia e Saúde.

Sofia Guedes Vaz mencionou também o Prémio Nobel da Economia de 2017, Richard Thaler, que se debruça sobre a Economia Comportamental, afirmando que os seres humanos não são, afinal, propriamente racionais.

“Nós somos muito maus a comunicar, nós ambientalistas. Somos irritantes e moralistas, ninguém nos aguenta. Estamos sempre a dizer aos outros o que devem e não devem fazer. Também inundamos as pessoas de factos chatos e somos donos da verdade absoluta: «nós» é que sabemos, «vocês» só sabem estragar”, ironizou. De seguida explicou que estes métodos não funcionam com ninguém, sendo a melhor forma de chegar às pessoas o storytelling ou contar de histórias.

“Para comunicar ambiente deve contar-se histórias e estudar Psicologia e Sociologia, de forma a conhecer as pessoas para quem falamos. Aquilo que nós queremos é uma história, onde há um bom, um mau e no fim acaba tudo em bem”, explicou, fazendo referência ao pensamento de George Monbiot, que estabelece a existência de duas grandes — e antitéticas — narrativas no pós-Guerra do século XX, apesar de partilharem a mesma estrutura.

“Neste momento já não temos nenhuma grande narrativa. Como é que vamos encontrar uma que substitua estas duas que já estão ultrapassadas? O que temos agora é bocadinhos de uma e de outra misturados... e isso não funciona. E não funciona para o ambiente. E não funciona porque o nosso planeta tem limites”, explicou, concluindo a intervenção com uma anedota que deixou o Espaço Vita ainda mais animado.

  

Poupar recursos primeiro, reciclar depois

Francisco Ferreira, Presidente da Associação Zero (AZ), tinha uma missão difícil depois de a colega de curso ter conseguido captar todas as atenções do Auditório. Ainda assim, o professor da Universidade Nova de Lisboa conseguiu surpreender e agarrou o repto deixado por Sofia Guedes Vaz.

“Ao ouvir a Sofia, decidi contar a histórias. A primeira teve lugar há pouco tempo. A meio de um jantar entre amigos, o microondas lá de casa avariou. Houve logo quem se oferecesse para ir comprar um. Eu lá teimei e por seis euros, a verdade é que conseguimos reparar aquele electrodoméstico antigo. Vejam bem, a porta até passou a funcionar melhor e acabei a poupar energia porque resolvi o problema com a luz que não apagava. Bom para o ambiente, não? Mas a verdade é que a história conta muito mais isto, indica-nos um estilo de vida que seguimos: substituir ou comprar é sempre o mais fácil”, explicou.

O Presidente da AZ contou ainda mais duas histórias. A primeira prende-se com o facto de ser pai de três filhos e ter uma PlayStation “obsoleta”, comprada na época do primeiro. Depois das pressões familiares para adquirir uma nova — já que o filho mais novo, em matéria de futebol, conhecia todas as equipas da época de 2003/2004, mas não as da época corrente — Francisco e a família decidiram então adquirir o equipamento mais recente. Mas não compraram jogos actualizados: em vez disso levam a cabo uma espécie de intercâmbio entre amigos e vizinhos, poupando dinheiro e recursos.

“A terceira e última história... Bom, mostra que os ambientalistas também são uns pecadores. Eu já escrevi um grande artigo sobre os malefícios dos carros a gasóleo. Ontem estava eu na estação a atestar o depósito do meu carro e perguntaram-me se eu não tinha um eléctrico”, explicou, entre risos, assumindo a escolha, mesmo que justificada. “Inventamos todas as desculpas necessárias”, rematou. 

Depois desta introdução mais descontraída, Francisco Ferreira passou aos números e dados.

“Nesta altura de frio para nós, fazem-se sentir no Árctico 20 graus acima do que era suposto. Na Sibéria são 30. A nossa orla marítima está em risco com ondas de 15 metros. O ano de 2017 foi o ano mais quente desde que a temperatura é registada. Estamos há dez meses com precipitação abaixo do normal”, apontou.

Para além das alterações climáticas, o Professor indicou o consumo de recursos como um dos maiores problemas actuais, dizendo que só depois de se conseguir baixar este indicador é que se deve falar em reciclagem.

“O planeta não aguenta este nível de emissões e consumo, precisamos de uma mudança enorme. A nossa felicidade não assenta realmente no consumo. 2015 foi um ano crucial: em Maio saiu a Encíclica Papal, em Setembro foram aprovados na ONU os 17 grandes objectivos de desenvolvimento sustentável e em Dezembro é estabelecido o Acordo de Paris. Foi um ano de grandes decisões, mas estas têm de ser consequentes, temos que as demonstrar no nosso estilo de vida. Todos, sem execepção, e sob pena de grandes riscos para o futuro se isto não for feito”, concluiu. Francisco Ferreira aproveitou ainda a ocasião para tecer rasgados elogios ao Papa, descrevendo-o positivamente como um grande estratega.

 

Ganhar dinheiro com as árvores, morrer sem elas

Uma alteração de agenda e de última hora impediu o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, de ocupar um lugar nos “Olhares sobre a Ecologia”. A substituí-lo esteve o Secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, José Mendes, que fechou a noite com chave de ouro.

O Engenheiro, Professor e Investigador começou por citar o Arcebispo Primaz, sublinhando a necessidade de gerar inconformismo na sociedade. O momento que se seguiu foi o mais solene da noite, com José Mendes a relembrar que apesar da grande problemática ambiental, outras há com carácter ainda mais urgente, como é o caso da Guerra na Síria que, desde o seu início, já matou uma criança por hora.

Sobre a ecologia e o ambiente, José Mendes articulou o seu discurso através de três mensagens que acabaram por tornar-se em três grandes questões.

“Começo por vos falar um pouco daquilo a que eu chamo de falácia do crescimento. Em 1955, Simon Kuznets pensou ter encontrado uma equação que daria resposta aos maiores problemas económicos. Dizia ele que à medida que o PIB (Produto Interno Bruto) aumentava, as desigualdades existentes acabariam por se agravar, depois estabilizar e por fim reduzir. Quarenta anos mais tarde, Grossman e Kruger adaptaram a curva de Kuznets à poluição: aumentando a economia, a poluição também aumentaria,  para depois estabilizar e por fim reduzir. Qual é o problema disto? Imaginemos, se eu chegar aqui, cortar as árvores todas de Braga e vendê-las... vou ganhar dinheiro com elas e o PIB vai crescer. O problema é que não conheço ninguém que consiga respirar sem elas...”, explicou, sublinhando que a curva apresentada se torna imperfeita, não podendo garantir um crescimento sustentável.

O Secretário de Estado Adjunto falou de seguida das alterações climáticas, citando tanto Francisco Ferreira como o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’.

“Na sociedade do pós-Guerra adquirimos hábitos como os modelos de produção lineares, ao invés dos circulares. A isto junta-se outra tendência nossa, a de acumulação de activos, como são exemplo os telemóveis e televisões. Quem é que não tem dois, três, quatro? Há um consumo exacerbado e um consequente desperdício imensurável (...) Danos irreparáveis, é o que todos estamos a infligir ao nosso planeta”, criticou.

A terceira e última mensagem de José Mendes acabou por ser um apelo à consciência e vontade de todos, numa clara alusão ao ditado “a união faz a força”.

“Temos que passar da palavra à acção! Temos que fazer um trabalho em todas as geografias e sectores. Não há plano B porque também não há planeta B. Temos que limitar a emissão de gases e todos os outros malefícios que estamos a levar a cabo. Isto não é, nem pode ser, um esforço isolado, não há fronteiras, estamos todos convocados a proteger a nossa casa comum!”, sublinhou.

José Mendes explicou ainda o conceito de justiça ecológica, resultante da dívida ecológica. Num mundo permeado de assimetrias, em que não há igualdade, o que transforma uma abordagem ecológica numa social é este conceito de justiça. O Secretário voltou a recorrer à Encíclica Papal e afirmou ser urgente ouvir “tanto o clamor da terra, como o clamor dos pobres”.

“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa: salvar a humanidade”, concluiu, citando Almada Negreiros.

A sessão contou ainda com tempo de debate, com a assembleia a aderir em peso através de dezenas de questões dirigidas a todos os oradores. Os próximos “Olhares” são já na próxima sexta-feira, dia 9 de Março, desta vez sobre Cidadania e Responsabilidade Social. O Ex-reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa, o historiador Pacheco Pereira e Isabel Estrada, professora da Universidade do Minho, são os oradores convidados. A moderação está a cargo de Júlio Magalhães, Director do Porto Canal. As inscrições são gratuitas, mas obrigatórias, e devem ser efectuadas em www.novaagora.pt.